terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Os primeiros abusos dos oficiais franceses e consequente resposta do Estado-Maior do Exército francês

À medida que o Exército invasor começava a instalar-se em Portugal, alguns oficiais do mesmo "exigiam nas casas em que se aboletavam, não só o necessário mas o supérfluo. Um escolhia os melhores quartos para seu aposento; outro, desdenhando a comida que se lhe oferecia, designava (como se as pagasse) as iguarias do jantar e da ceia; este apresentava a lista numerosa dos trastes que não podia dispensar no seu serviço; aquele mudava em pouco tempo de alojamento, só para conduzir ao novo os móveis de que se tinha servido no antigo" [Theodoro José Biancardi, Cartas Americanas, p. 136].
Diz Domingos Alves Branco Muniz Barreto, na sua Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa [fls.7-8], que "o Comendador das Caldas foi despejado das casas do largo do Loreto [actual largo do Chiado] para servir de Quartel de ordens e para residência de três Generais de Brigada e de dois Ajudantes de Campo do General em Chefe [...]. Mas todos iam jantar à casa do [barão de] Quintela.
[A] Mr. Delaborde, General imediato a Mr. Junot [...] se lhe destinou a casa de António de Araújo de Azevedo, da qual se mudou em breves dias para o palácio do Ex.mo Duque de Cadaval [que partira para o Brasil], trazendo consigo em carros de mato e em carros comuns toda a mobília e quanto achou na mesma casa, fosse ou não precioso. Não se satisfazendo com esta herança, tomou igualmente posse de todos os móveis que achou no mesmo palácio, e pertenciam ao Duque, não deixando para a residência de seu irmão, o Ex.mo D. Nuno, mais que os pequenos quartos que fazem frente para o Rossio, sendo impedido de se comunicar pelo interior do pátio e portão do palácio, o que o obrigou a mandar abrir uma nova escada, para a frente do mesmo Rossio. 
Mr. Thiebault, terceiro General imediato a Delaborde, foi alojar-se em casa do deputado da Junta do Comércio Jacome Ratton [actual sede do Tribunal Constitucional] [...].
Mr. Laffet, General de Cavalaria, foi alojar-se em casa do negociante Francisco António Ferreira, levando consigo grande comitivas; e este é o que fez maior despesa com a hospedagem, depois do Barão de Quintela, que só em cera para luzes do General Mr. Junot e sua comitiva, despende diariamente, como já fica dito, 19$200 réis. 
Todos os outros Generais do Exército, tanto de Divisão como de Brigada, Oficiais maiores e Oficiais subalternos, foram alojados por todas as casas de Lisboa, sem distinção de classes nem de empregos.
Os soldados foram aquartelados nos conventos do Carmo, da Boa-Hora, dos Paulistas, de S. Domingos, de S. Pedro de Alcântara, de Belém e de Mafra.
Além destes alojamentos, foram obrigados os fanqueiros, capelistas, mercadores, ourives e todas as outras corporações de ofícios, darem por cada indivíduo quatro camas chamadas rabecas [i.e., enxergas de palha], e outros tantos cobertores em que foram multados para dormirem os soldados franceses. Os mercadores foram os mais lesados nesta contribuição, porque além do que já tinham dado, foram de novo multados cada um em 200 covados [132 metros] de baeta ou baetão [tecidos de lã] para cobertores.
Logo depois dos referidos alojamentos, ordenou o General Mr. Junot [que] fosse chamado o Intendente das Cavalariças, Joaquim da Costa e Silva, para lhe dar uma relação circunstanciada do número de coches, seges, bestas e cavalos pertencentes a V.A.R. [Vossa Alteza Real]; o que, executando em breve tempo, houve neste artigo a maior prostituição. As mesmas carruagens em que V.A.R. rodava e a sua Real Família, e que se deviam respeitar, não só foram distribuídas pelos Generais franceses para seu uso, e dos Oficiais maiores e civis, mas que até se destinavam para conduzir nelas dançarinas e outras mulheres semelhantes, e com os mesmos criados de V.A.R. e com as librés da casa".


Acúrsio das Neves acrescenta alguns pormenores a estas delapidações e humilhações na sua História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino [Tomo I1809, Lisboa, pp. 239-247].

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A este respeito, veja-se o seguinte ofício do Intendente Geral da Polícia de Lisboa:

Ofício de Lucas Seabra da Silva aos Governadores do Reino
(4 de Dezembro de 1807)


Os Generais franceses fazem requisições de diversos objectos que dizem ser indispensáveis para uma profusa e lauta mesa, e para a sustentação dos seus domésticos, como se manifesta das inclusas contas e requisição [estes documentos não se encontram na fonte]. A multiplicidade destes objectos fazem uma despesa considerável; não se tem até agora designado donde deverá sair; e ninguém se presta à venda dos géneros, sem que se lhe indique a certeza e modo do pagamento. Sirvam-se Vossas Excelências dar providência sobre este artigo, pois que sem ela não se pode satisfazer às mesmas requisições, só empregando-se a força e a extorsão.

(Fonte: António Ferrão, A 1.ª Invasão Francesa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925, pp. 9-10)

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No meio de todos estes vexames, publicava-se finalmente no dia 9 de Dezembro a seguinte Ordem do dia. Segundo o referido Acúrsio das Neves, "que efeito podia produzir esta ordem contra o exemplo que o próprio Junot estava dando em casa do Barão de Quintela, e os outros Generais naquelas em que se aquartelavam? Continuou-se na mesma, ou talvez com maior excesso" (id., p. 243).




Ordem do Dia do Exército Francês


Quartel-General de Lisboa, aos 9 de Dezembro de 1807

Repetidas queixas se fizeram a Sua Excelência Mr. o General em Chefe [Junot], de que muitos Oficiais, apesar da Ordem geral do Exército n.º 22, deliberaram-se a pedir mesa nas casas onde estão alojados.
Sua Excelência sente muito esta desobediência e espera que a mesma não será mais praticada.
Sua Excelência lembra aos Senhores Oficiais que tanto em Lisboa como nas mais cidades de Portugal se devem considerar como estando de Guarnição, não tendo outro direito de pedir às casas mais que alojamento, lume e luz.
Sua Excelência lembra-lhes finalmente que os Oficiais do Exército de Portugal serão tratados como os do Grande Exército [de Napoleão]; receberão um soldo extraordinário, que lhes será exactamente pago, e que bastará para suprir as despesas do seu tratamento e sustentação.
Por ordem de Sua Excelência Mr. o General em Chefe, Junot


O General Chefe do Estado Maior, General Thiébault.



(Fonte: Joaquim José Pereira de FREITAS, Biblioteca Histórica, Política e Diplomática da Nação Portuguesa – Tomo I, Londres, Casa de Sustenance e Strecht, 1830, p. 63).

Pastorais do Cardeal Patriarca de Lisboa e do Bispo de Lamego





D. José Francisco Miguel António de Mendonça (1725-1818), 5.º Patriarca de Lisboa desde 1786 e nomeado Cardeal pelo Papa Pio VI, em 1788, foi também Capelão mor da rainha D. Maria I. Segundo as instruções do Decreto de 26 de Novembro de 1807, era a este clérigo que os governadores escolhidos para a Regência deveriam deveriam prestar juramento do cumprimento das ordenações do príncipe regente.
Acontece que, logo no dia 1 de Dezembro, segundo o manuscrito já citado de Domingos Alves Branco Muniz Barreto, "o Cardeal Patriarca mandou, pelo seu secretário, cumprimentar o General Mr. Junot, significando-lhe que não o podia fazer pessoalmente, em razão da sua avançada idade e graves moléstias. Foi recebido este cortejo com muita benignidade, e agradecendo-lhe a visita, mandou-lhe significar, contudo, que tinha a maior precisão de lhe falar sobre coisas relativas à religião e ao seu clero, ao que resultou nessa mesma tarde ir pessoalmente o Cardeal Patriarca à casa da residência do General em Chefe, aonde se apeou com muito custo, e subindo as escadas quase nos braços de dois oficiais franceses que desceram à porta da rua a recebê-lo, o General Mr. Junot o veio buscar ao patamar da escada, e com os maiores cumprimentos e cerimónias, o conduziu à sala grande, aonde o fez sentar, e com ele se demorou duas horas. Nas despedidas, quis acompanhá-lo até ao coche, no que não quis convir o Patriarca, e nestes cumprimentos levaram muito tempo, até que finalmente, cedendo o mesmo General, desceu então sustentado em braços do mesmo modo que tinha subido, sendo acompanhado até ao coche por todo o Estado Maior do General em Chefe.
Logo no dia seguinte foi o sobredito General, acompanhado de todos os Generais e do seu Estado Maior pagar a visita àquele Prelado, aonde se demorou meia hora, e foi a única visita que pagou" (in Memoria dos Successos acontecidos na Cidade de Lisboa..., fl. 6).


O resultado destas visitas tornou-se claro no dia 8 de Dezembro, quando apareceu "afixada nas portas de todas as igrejas de Lisboa uma Pastoral do Cardeal Patriarca, a qual foi muito desagradável a todas as pessoas. O povo arrancou-as de tal maneira que foi necessário afixarem-se segundas, e para que não tivessem a mesma sorte das primeiras, foram postas no interior das igrejas" (id., fl. 28).


Na verdade, para além de satisfazer a própria vontade do príncipe regente de que os invasores fossem acolhidos como amigos, o Cardeal Patriarca extravasara-se em elogios ao Imperador, que reconhecia ser um enviado de Deus...  Da mesma forma como outrora a Igreja condenara a Revolução, agora recomendava ao seu rebanho o sossego e a tranquilidade.
Oliveira Martins escreveu criticamente a este respeito que “tudo se curvava, a começar pela Regência. O cardeal Mendonça, patriarca de Lisboa, chamava a Napoleão o Prodígio, o grande imperador eleito por Deus para fortuna dos povos!”... [Oliveira Martins, História de Portugal – Tomo II, 3.ª ed., 1882, p. 245].

Fonte: Wikipedia
Gravura do Cardeal D. José Francisco de Mendonça





Pastoral do Cardeal Patriarca de Lisboa recomendando aos seus diocesanos confiança em Napoleão e no seu Exército 
(8 de Dezembro de 1807)



Josephus II, cardinalis patriarcha lisbonensis.


A todas as pessoas eclesiásticas e seculares deste nosso patriarcado, saúde e benção.
Já que, amados filhos, a nossa cansada idade e o peso das muitas moléstias com que a divina misericórdia nos tem favorecido não  nos podem permitir o falar-vos de viva voz na presente ocasião, podemos contudo dirigir-vos, como vosso pai e pastor, por este modo, como já o fizemos pelos nosso párocos e pregadores, os nossos sentimentos e exortações para que o Senhor, no fatal dia, não  nos argua de omissos neste essencial e importante dever do nosso sagrado ministério, que todo se dirige a unir-vos em caridade cristã, para conseguirdes o sossego e a paz de que todos necessitamos nas presentes circunstâncias.
Sim, amados filhos, vós bem sabeis pela própria experiência a situação em que nos achamos; mas também não ignorais o quanto a divina clemência, no meio mesmo de tantas tribulações, nos favorece: benditos sejam sempre os seus altíssimos juízos!
É pois muito necessário, amados filhos, ser fiel aos imutáveis decretos da sua divina providência; e para o ser devemos, primeiro que tudo, com coração contrito e humilhado, agradecer-lhes tantos e tao contínuos benefícios que da sua liberal mão temos recebido, sendo um deles a boa ordem e quietação com que neste Reino tem sido recebido um grande exército, o qual, vindo em nosso socorro, nos dá bem fundadas esperanças de felicidade; benefício que igualmente devemos à actividade e boa direcção do General em Chefe que o comanda [Junot], cujas virtudes são por nós há muito conhecidas.
Não temais, amados filhos, vivei seguros em vossas casas e fora delas; lembrai-vos que este exército é de Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei de Itália, Napoleão o Grande, que Deus tem destinado para amparar, proteger, e fazer a felicidade dos Povos. Vós o sabeis, o mundo todo o sabe. Confiai com segurança neste homem prodigioso, desconhecido de todos os séculos; ele derramará sobre nós as felicidades da Paz, se vós respeitareis as suas determinações, se vos amareis todos mutuamente, nacionais e estrangeiros com fraterna caridade: deste modo a religião e os seus ministros serão sempre respeitados; não serão violadas as clausuras das esposas do Senhor [i.e., as freiras], e o povo todo será feliz, merecendo tão alta protecção. Meus filhos, fazei-o assim para cumprirdes fielmente com o que Nosso Salvador Jesus Cristo tanto nos recomenda. Vivei sujeitos aos que vos governam, não só pelo respeito que se lhes deve, mas porque a própria consciência vos obriga.
Tornamos finalmente a recomendar muito a todos os párocos nossos coadjutores, e mais clero deste patriarcado, e até lho pedimos pelas entranhas de Jesus Cristo, que concorram quanto lhes for possível para esta união em todas as ocasiões e lugares, instruindo os povos de tal sorte, que eles possam bem conhecer as vantagens que, em o assim praticarem, devem conseguir.
E para que chegue à notícia de todos, mandámos passar a presente, que será publicada à estação das missas conventuais e afixada nos lugares do costume.
Dada na Junqueira, no palácio da nossa residência, sob o nosso sinal e selo das nossas armas, aos 8 de Dezembro de 1807.

J., Cardeal Patriarca






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No Segundo Supplemento à Gazeta de Lisboa, n.º LI, de 26 de Dezembro de 1807, foi publicado este documento, seguido pelo seguinte texto: "Dos termos em que é concebida esta pastoral se vê o quanto o povo deve confiar e estar persuadido que se dirige ao seu bem a vinda do Exército francês que aqui se acha, muito principalmente por ser comandado pelo Excelentíssimo Senhor General Junot, chefe cujas virtudes afiança o nosso Eminentíssimo Prelado, e que são o melhor presságio do bom êxito que da sua expedição se devem prometer todos os portugueses que amam sinceramente os interesses da pátria".




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Muito possivelmente sem ter conhecimento da pastoral do Cardeal Patriarca, o bispo de Lamego, D. João António Binet Píncio, mandava distribuir pelos párocos da sua diocese a seguinte pastoral, relativa ao bom acolhimento das tropas estrangeiras: 


D. João, Bispo de Lamego, etc., fazemos saber aos Reverendos Párocos da nossa Dioceses que nas actuais circunstâncias é preciso, para conter alguma desordem dos povos e evitar grandes ruínas, fazer-lhes conhecer que pelos gerais princípios da nossa santa Religião, pelas razões próprias da humanidade e pelos motivos do público e geral interesse, jamais foi permitido ofender ou insultar ao nosso próximo, principalmente quando ele não nos prova; e muito menos quando as ordens Augustas [do Príncipe Regente] nos recomendam os bons ofícios da hospitalidade. Nestes termos se acham todas as pessoas do exército que entrou e vai entrando nestes Reinos, com os protestos [=declarações] de afiançar tanto os efeitos da sua amizade na nossa moderação como as da sua vingança a ferro e fogo, devastação e ruínas de povoações, vilas e cidades, se o mau comportamento de qualquer indivíduo destes Reinos desafiar a sua cólera, por infâmia, injúrias ou ofensas que pratique, como pode suceder por falta de reflexão, poucos conhecimentos dos deveres da humanidade e mesmo por estragamento de juízo. Ao que devemos acudir, persuadindo a todos que não ofendam por qualquer maneira a pessoas algumas do dito exército; antes os tratem como amigos, mesmo fornecendo-lhes o possível e justo socorro de que precisarem, fugindo (numa palavra), tanto por amor do bem como por temor do mal, de tudo o que puder escandalizar os chefes e membros do dito exército. O que cada um dos Reverendos Párocos nossos coadjutores deve fazer conhecer e persuadir os seus paroquianos. 
Lamego, 9 de Dezembro de 1807.
João, Bispo de Lamego
[Fonte: João Francisco Marques, "O clero nortenho e as invasões francesas - patriotismo e resistência regional", in Revista de História, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n.º 9, 1989, pp. 165-246, p. 234]




Junot e o entrave das finanças portuguesas

Ao mesmo tempo que Junot se via prejudicado pelo facto de grande parte das suas tropas tardarem em chegar a Portugal, um assunto de não menor importância embaraçava sobremaneira o Governador em Chefe do Exército invasor: a administração das finanças e dos víveres. Portugal, país relativamente pobre e endividado, tinha sido "saqueado" pela corte antes da sua partida para o Brasil (segundo o próprio Junot, tais riquezas estariam avaliadas em 150 milhões de cruzados [Diário da I Invasão Francesa, p. 107]). Sem dinheiro nos cofres régios, as medidas de Junot tornavam-se difíceis, para não dizer impossíveis. A fuga da corte tinha deixado atrás de si apenas algum pouco dinheiro de contado, jóias e "bens fundiários, casas e algum mobiliário"  [Diário da I Invasão Francesa, p. 110]... Mas como convertê-los em dinheiro, se cerca de 2/3 deste tinha embarcado para o Brasil? Junot via-se bastante atrapalhado a este respeito, como se denota, entre muitas outras, logo na primeira carta conhecida que escreveu ao Imperador durante a sua permanência em Lisboa. 
Era necessário, pelo menos num primeiro momento (relembre-se que o exército invasor se apresentara como amigo), continuar-se a pagar altas rendas à nobreza, aos membros da Regência, a todo o exército português e, enfim, a todos os cargos que continuavam a gerir o país. Para além do mais, havia que alimentar e pagar todos os soldados invasores, incluindo os espanhóis.  Um número que, a ser completado como se previa na Convenção secreta anexa ao Tratado de Fontainebleau, ascenderia a 55.000 homens. A própria esquadra russa ancorada no Tejo, apesar de se manter numa "impassível neutralidade", privava Junot de cerca de 8.000 rações diárias [Diário da I Invasão Francesa, p. 107]... 
Não foi por acaso que logo no dia 6 de Dezembro Junot escreveu a Napoleão acerca da reorganização do Exército português. Era fundamental que se concedessem licenças não só a todos os soldados casados, mas também a todos os que as pedissem, escusando assim de se manter parte da população armada; mas por tudo o já visto, não era menos importante para Junot ficar livre de alimentar mais bocas que as estritamente necessárias. 

O General Junot, segundo litografia de Victor Adam