sábado, 2 de janeiro de 2010

Decretos de Junot relativos à declaração, apreensão e venda dos bens e propriedades inglesas


No dia 4 de Dezembro, Junot tinha decretado a apreensão de todos os bens e propriedades inglesas. Tal medida, no entanto, não era de fácil execução, como se deixa transparecer através da série de decretos que a seguir se inserem (todos eles publicados no mesmo mês).
Na verdade, no último destes decretos, o próprio Junot chega ao cúmulo de, sob o pretexto da falta de víveres, contradizer as instruções de Napoleão e permitir o desembarque de mercadorias inglesas até aí embargadas em embarcações ancoradas no porto de Lisboa...



*




*









*


*





[Fonte: Collecçaõ de Decretos, Editaes, &c. &c. &c., Lisboa, Typografia Rollandiana, 1808]

Carta de Junot à Regência (15 de Dezembro de 1807)



Depois de vermos como as tropas espanholas foram ocupando o norte e sul do país, regressemos a Lisboa. A meados de Dezembro, e de acordo com Domingos Alves Branco Muniz Barreto, "era vulgar em Lisboa e corria como um facto que o General em Chefe tinha recebido uma representação anónima, na qual se lhe requeria certas providências para o bem do Estado, e até insinuando-lhe os meios com que se deviam dar. Ou fosse por este motivo, ou outro qualquer, é certo que Mr. Junot fez expedir uma extensa carta ao Governo da Regência, a qual é do teor seguinte:


O Governador de Paris, Primeiro Ajudante de Campo de Sua Majestade o Imperador e Rei, General em Chefe


Aos Senhores do Conselho de Regência




Senhores:


De todas as obrigações que o Imperador meu Amo me encarregou, a de melhorar a sorte dos portugueses ocupam-me bastantemente. Para o conseguir necessito de ser socorrido por pessoas de probidade e, particularmente, pelas autoridades do país. Necessito igualmente que as minhas intenções sejam conhecidas.
É essencialmente necessário tranquilizar o público do temor em que está pela falta de víveres. Há muito tempo que este objecto tem ocupado o meu cuidado. A carta inclusa o prova.
Eu me tenho prevenido de todas as coisas e os meus cuidados não serão infrutíferos. Porém, os mesmos portugueses devem-me ajudar. 
Participei ao comércio e a todos os especuladores que eu concederei uma inteira protecção a todos os que fizerem entrar víveres em Lisboa e noutros portos de Portugal, dos quais a venda será livre e segura. 
A suspensão dos trabalhos e a estagnação do comércio trouxeram a ociosidade a muita gente; e da ociosidade nasce a desordem. Tenho ordenado a Mr. Hermann que os oficiais artífices da marinha e os demais que se empregavam nas oficinas da artilharia sejam pagos todas as segundas-feiras, em proporção dos trabalhos que fizerem.
Tenho igualmente ordenado a Mr. Hermann de vos pedir uma relação das obras começadas por ordem do Príncipe do Brasil [D. João], a fim de conhecer se devem ser continuadas; ou se os oficiais que nela se ocupam deveram ser empregados em trabalhos mais úteis e mais necessários.
Anunciai ao povo estas disposições; obrigai com boas maneiras aos cidadãos que tinham principiado obras para que as continuem, ao menos em parte. Todos nas circunstâncias actuais devem prestar-se ao bem público.
Não sofrais que intrigantes corrompam a opinião pública, intimidando ao povo e aos sacerdotes com o pretexto de religião. O Exército francês, o seu chefe, a nação francesa e o seu Imperador professam a Religião Católica e Apostólica Romana. Os que procuram semear a desordem e a rebelião são unicamente os emissários do exótico Governo inglês.
Mandai fazer uma lista dos oficiais existentes em Lisboa pelas suas diferentes profissões. Que se dêm passaportes àqueles que não são de Lisboa, a fim de que passem a trabalhar nas suas províncias; e em suas pátrias os que forem estrangeiros. O resto que ficar, sendo em menor número, sendo fácil ocupá-los, igualmente serão felizes.
Os fabricantes devem dirigir e continuar os seus estabelecimentos sobre objectos necessários ao gasto do país, principalmente sobre aqueles que vinham do estrangeiro.
Lançai as vistas para toda a parte onde descobrires abusos e anunciai-nos e indicai-nos os meios de os destruir. Eu prontamente os adoptarei, e do mesmo modo providenciarei o que vós não podereis providenciar.
Estimara que o Conselho dividisse o seu trabalho, a fim de que o público saiba a quem se deve dirigir em cada repartição. Esta divisão pode ser feita da maneira seguinte: a Guerra, a Marinha e a Polícia; o interior e as Finanças em geral, tanto pelo que pertence como a despesas; o culto; as pensões; e as reclamações de qualquer natureza. Deve haver um fiscal para cada uma das divisões ser expedida, e para a execução de cada ordem o Conselho se reunirá com o comissário do Governo francês [Mr. Hermann], que será também consultado, para este me dar conta de todas as disposições que se tomassem, assim como das que se decidirem.
Por este meio todas as ordens partem do mesmo centro e, dirigidos pelas mesmas boas intenções, não deixaremos de conseguir o fim a que todos nos propusemos: o bem geral.
Incitai, Senhores, a segurança da minha alta consideração.


Lisboa, 15 de Dezembro de 1807


Junot




PS: Tende a bondade de me remeter a carta que vai inclusa, depois de terdes tomado dela perfeito conhecimento."




____________________________________________




In Domingos Alves Branco Muniz Barreto, Memoria dos Successos acontecidos na cidade de Lisboa, fls. 35v-37.

Principais pontos de ocupação das tropas invasoras em finais de Dezembro de 1807




Principais locais ocupados pelas tropas francesas (a azul) e espanholas (a vermelho)
em finais de Dezembro de 1807 









Pormenor

A província de Trás-os-Montes durante as invasões

Durante o mês de Dezembro de 1807, a ocupação do território português por parte dos exércitos invasores ia-se limitando à guarnição de alguns pontos estratégicos da costa portuguesa e algumas poucas cidades do interior, nunca muito distantes do litoral. A maior excepção seria uma faixa de poucos quilómetros de largura, compreendida entre a fronteira (na zona de Alcántara) e Lisboa, faixa esta guarnecida com tropas francesas que protegiam o acesso à capital (recorde-se que as tropas de Junot ainda não tinham chegado na sua totalidade). Sendo um dos principais objectivos desta invasão o cumprimento do bloqueio continental decretado no ano anterior por Napoleão, percebe-se o desleixo de ambas as forças em guarnecer o interior. 
Neste sentido, a província de Trás-os-Montes, governada pelo Tenente General Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, foi a "mais feliz, porque não conheceu franceses nem espanhóis, o que procedeu talvez de terem discordado Junot e Taranco a respeito do governo dela. Ambos expediam ordem para esta província, mas chegavam frias, porque nenhum a ocupou com as suas tropas; apenas alguns pequenos destacamentos espanhóis fizeram nela reconhecimento em diferentes ocasiões, com o pretexto de procurarem desertores" (Acúrsio das Neves, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal... - Tomo I, 1809, pp. 304-305).



Fonte: BND
Tenente General Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda

Aviso da Regência para o General do Minho (23 de Dezembro de 1807)

Tal como se passara em relação ao sul do país, a Regência também avisou as autoridades do norte para acolherem e prestarem os apoios possíveis às tropas invasoras. A seguinte carta foi escrita pelo Conde de Sampaio ao General do Minho, Gonçalo Pereira Caldas:







In Simão José da Luz SORIANO, História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em Portugal. Compreendendo a História Diplomática, Militar e Política deste Reino, desde 1777 até 1834 – Segunda Época - Tomo V – Parte I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893, pp. 7-8.

A ocupação do norte do país pelas forças espanholas

Apesar da convenção anexa ao Tratado de Fontainebleau prever que as tropas francesas e espanholas ocupassem o país ao mesmo tempo, tal não se passou quer no sul, quer no norte de Portugal. Tendo plena consciência disto mal chegara a Abrantes, Junot ordenou então que a Divisão espanhola do General Carrafa, que acompanhara a entrada das tropas francesas em Portugal, se dirigisse para o Porto. Porquê o norte e não o sul? Era natural que Junot tomasse aquela resolução, pois como o General Taranco se demorava a ocupar o território denominado como Reino da Lusitânia Setentrional (segundo o aludido tratado), "era necessário ir segurar a importante cidade do Porto, por onde podiam sair grande parte dos habitantes e das riquezas de Portugal, sendo a segunda cidade do reino em grandeza e opulência, e achando-se também nela a prata das igrejas do Bispado e de Braga" (José Accursio das NEVES, História Geral da Invasão dos Franceses em Portugal, e da Restauração deste Reino – Tomo I, 1809, Lisboa, pp. 299-300). De acordo com este mesmo autor, o Porto esteve alguns dias sem tropas estrangeiras depois da saída da corte para o Brasil. A ocasião era assim propícia para se porem a salvo muitas riquezas e pessoas, que, de facto, chegaram a embarcar no navio Amor da Pátria, que estava pronto para se fazer ao mar no dia 4 de Dezembro, "mas obstaram-lhe as autoridades civis e militares daquela cidade; o capitão do navio foi repreendido, e ordens rigorosas embaraçaram a saída de qualquer outro que a tentasse" (id., p. 300).
A marcha da Divisão Carrafa foi no entanto bastante morosa. Estas tropas alcançaram Tomar no dia 28 de Novembro, mas só partiram no dia 9 de Dezembro, talvez em virtude do atraso do pagamento duma contribuição que Carrafa tinha imposto. De Tomar partiram em direcção a Coimbra (onde foram arrecadados mais dez mil cruzados, a somar aos quatro mil adquiridos em Tomar). Quando chega ao Porto, já a Divisão do seu conterrâneo General Taranco encontrava-se aí há alguns dias. 


Percurso da Divisão Carrafa, de Abrantes ao Porto




Como já se referiu, depois de atravessar o país na zona de Valença, Taranco  (Governador e Capitão General da Galiza), chegou ao Porto no dia 13 de Dezembro, tendo logo mandado publicar uma proclamação sua.


Ver mapa maior

Percurso da Divisão Taranco, de Tuy ao Porto


De acordo com Acúrsio das Neves, o General Taranco fez o possível por abrandar e suavizar os efeitos da invasão, mais que não fosse porque não impôs contribuições para o seu governo militar. Mas Taranco não se ficou só por aqui: "Não se intrometia no governo civil, deixando pacificamente aos tribunais e ministros o uso da jurisdição que tinham em nome do nosso legítimo soberano. Criou sim um novo tribunal da fazenda; mas composto de portugueses, e com o fundamento de que era necessário para prevenir o desarranjo em que ficaram as rendas reais, pela ausência do príncipe regente. Na verdade, as circunstâncias o exigiam; não pela falta de soberano, pois esta se achava suprida pelo legítimo governo que fazia as suas vezes, mas porque executando-se, posto que momentaneamente, o desmembramento do reino traçado em Fontainebleau, era necessário dar nova forma à administração da real fazenda das províncias invadidas pelos espanhóis; pois que, a respeito delas, cessava a jurisdição do erário de Lisboa.
Não apareceu uma só ordem de Taranco que desse ideia aos portugueses de que tinham mudado de soberano, senão a carta de 15 de Dezembro, dirigida ao Chanceler da Relação do Porto, em que lhe participava as ordens que recebera do Príncipe da Paz para facilitar o comércio de carnes e outros géneros de Espanha para Portugal, que devia já reputar-se como uma parte do território espanhol, separado da Inglaterra, e sem recursos por mar". "Por outra ordem posterior, expedida por Taranco ao superintendente das alfândegas, determinou este General que se despachassem os víveres vindos de Espanha com a metade dos direitos e sem a multiplicidade de emolumentos do costume" (id., pp. 303-304).