quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Procedimento de um oficial francês em Montemor-o-Novo, em Fevereiro de 1808


No dia 22 de Fevereiro, depois de no dia anterior ter chegado a Montemor-o-Novo um destacamento de tropas francesas conduzindo alguns carros pertencentes ao trem militar, um oficial francês, não identificado, requereu ao Juiz de Fora da vila mantimentos e alguns bois para os carros de transporte. Tendo o Juiz de Fora (hoje diríamos presidente da Câmara) mandado aprontar tudo o que lhe foi pedido, qual não foi o seu espanto quando no dia seguinte se deu conta que o referido oficial francês, que já tinha dado mostras de alguma arrogância durante a sua estadia, abandonara a maioria dos carros de bois pouco depois de sair da vila, pedindo dinheiro aos seus condutores para se retirarem e levarem os bois, e despedindo os oficiais portugueses que o mesmo Juiz de Fora tinha cedido para escolta... Assim, no próprio dia 23 o Juiz de Fora queixou-se a Junot, não para "vilipendiar a nação francesa" (segundo as suas próprias palavras) mas sim para saber o que faria com os carros que tinham sido abandonados. 

Infelizmente, os três documentos conhecidos sobre este episódio estão parcialmente deteriorados, tornando impossível a sua transcrição integral. Mesmo assim, como deixam perceber o essencial, decidimos publicá-los aqui. As duas primeiras cartas são do Juiz de Fora de Montemor-o-Novo ao General Junot, enquanto que a última deve ser (?) do Secretário de Estado do Interior, mr. Hermann ao Conde de Sampaio. Os documentos que são citados pelo Juiz de Fora não se encontram no mesmo corpo documental.



N.º 1 [Carta do Juiz de Fora de Montemor-o-Novo ao General Junot]



Il.mo e Ex.mo Senhor: 

Vindo pernoitar a esta vila, no dia 21 do corrente, um pequeno destacamento de tropas francesas que conduzem vários carros de transporte, apresentou-se-me no seguinte dia o oficial comandante, a fim de lhe fazer prontificar não só os víveres para a sustentação, mas [também] um grande número de bois para a condução dos carros. 

Com o zelo e eficácia que até ao presente tenho praticado em todos os deveres que me são relativos, e muito particularmente a bem do serviço, me prestei imediatamente àquelas requisições, quanto cabe nos limites da jurisdição que me é confiada, requerendo para maior brevidade, ao oficial português do Regimento de Cavalaria n.º 5 que comanda o destacamento que se acha nesta mesma vila, [alguns] soldados que, marchando às freguesias deste termo em companhia de oficiais meus, fizessem conduzir aqueles bois para a continuação da jornada dos referidos carros e tropa. 

Com efeito, no dia de hoje se pôs em marcha aquele destacamento, levando cada carro a duas e a três parelhas de bois, de cuja maneira principiaram a seguir sua jornada, que, pessoalmente e no acto da partida, fui avivar e concorrer para a boa ordem, em vistas da menos prudência com que aquele oficial entrou a conduzir-se não só no quartel, mas [ainda] publicamente, tendo também em minha companhia o comandante português. 

Pouco depois fui informado de que o oficial francês despedira de livre vontade a tropa portuguesa que se lhes havia dado pelo Governador da Praça [....................] da Guia até Aldeia [....................] abandonara todos ou a maior parte dos carros, despedindo os condutores, e deles percebendo [=recebendo] donativos a fim de se retirarem, como seus gados, o que se veio a realizar, ficando por isso [os carros] na estrada, em total desprezo, e retirando-se aquele comandante e tropa. Fui imediatamente examinar este facto, e achando-o verdadeiro, depois de providências, o que melhor me pareceu, a fim de evitar-se qualquer descaminho, procedi ao sumário de testemunhos [que vai] junto, fazendo extrair a atestação que o acompanha; não sendo da minha intenção o vilipendiar a nação francesa, que tanto respeito, nem tampouco o oficial do destacamento, por quem talvez seriam praticados aqueles factos impensadamente, mas sim para fazer certo na presença de V.ª Ex.ª a minha justiça, quando seja arguido, rogando-lhe [que] queira ordenar-me se devo fazer conduzir aqueles carros a Aldeia Galega [= actual Montijo], ou à primeira vila que nas marchas se segue ao território deste termo, ou finalmente se os devo conservar em meu poder, para assim obrar com melhor acerto e segundo o que for do agrado de V.ª Ex.ª 

Deus Guarde a V.ª Ex.ª muitos anos. 

Montemor-o-Novo, 23 de Fevereiro de 1808. 


O Juiz de Fora




N.º 2 [Carta do Juiz de Fora de Montemor-o-Novo a Junot]


Ilmo e Exmo Senhor: 

Em data de 23 do corrente, por um [correio] expresso, dei conta a V.ª Ex.ª dos factos acontecidos pelo oficial francês que conduzia os carros de transporte pertencentes a equipagens militares do exército de Sua Majestade Imperial e Real, que nesta vila havia pernoitado no dia 21, e saído em marcha no mesmo dia 23. E não sendo possível dar então inteira conta do que mais acrescia, o faço agora em abono da minha justiça, e [da] verdade do meu procedimento. 

Pela certidão [com a] letra A, faço ver a V.ª Ex.ª que aquele oficial, sendo menos exacto na comissão que lhe foi confiada, já antes de entrar nesta vila havia abandonado dois daqueles carros, deixando-os no campo em total desamparo, sem guardas algumas, e sem que ao menos me requeresse o seu resguardo, de maneira que pelos oficiais diante mim[?], a quem havia encarregado a expedição dos aprestes necessários para a marcha, foram conduzidos a incorporar-se com os demais, saíndo para isso o número de vinte e um. 

Pelo documento [com a] letra B, igualmente faço ver a V.ª Ex.ª [o] exame a que pessoalmente procedi nos referidos carros, depois de novamente os fazer conduzir para esta vila dos sítios em que aquele oficial condutor os havia abandonado, sendo alguns já na distância de quase meia légua, o estado em que se acharam, e a conservação em que ficam. 

Pelo documento [com a] letra C, finalmente dou conta a V.ª Ex.ª de uma porção de roupa branca, que [....................] próximo à ribeira desta mesma vila, que por ser em pequena distância da em que se achavam alguns dos carros, ignoro inteiramente se a eles pertence, visto que não se pôde descobrir vestígio algum que assim o faça persuadir, fazendo portanto constar a sua quantidade, qualidade, marcas e conservação. 

Em vistas de tudo, e daquela antecedente conta que fiz pôr na sempre respeitável presença de V.ª Ex.ª, em consequência do meu dever e justiça, confio e espero que V.ª Ex.ª se digne ordenar-me o que bem lhe parecer, e [que] mais for do seu agrado. 

Deus Guarde a V.ª Ex.ª muitos anos. 

Montemor-o-Novo, 24 de Fevereiro de 1808. 


O Juiz de Fora





[Carta de Hermann (?) ao Conde de Sampaio]


Ilmo e Exmo Senhor: 

Pelos factos acontecidos na vila de Montemor-o-Novo no dia 23 do corrente Fevereiro, deu conta ao Ilmo e Exmo Senhor General em Chefe o Juiz de Fora daquela vila, António Caetano Pereira de Lima e Sampaio, legalizando com o sumário a que procedeu e de[mais] documentos, o que tudo se depreende da cópia junta – n.º 1 – , assim como o incurial [=irregular] procedimento do oficial condutor dos carros de transporte pertencentes às equipagens militares do exército francês, pelo qual unicamente foi motivado.

Acrescendo àqueles factos novas circunstâncias, logo no dia seguinte – 24 –, o mesmo ministro oficiosamente deu nova conta ao referido Exmo Sr. General, o que se mostra da cópia – n.º 2 –, a qual fez verídica com os documentos que da mesma se alcançam.

Roga-se ao Ilmo e Exmo Sr. Conde de Sampaio [que] queira dignar-se saber por parte do Juiz de Fora o estado daquelas contas, e o modo por que seriam aceites por aquele Exmo Sr. General em Chefe, na certeza de que o mesmo ministro deseja prestar-se com a maior submissão e respeito à obediência do mesmo Exmo Sr. e [das] suas ordens, assim como a tudo quanto lhe foi ordenado pelo Exmo Sr. Conde de Sampaio. [....................]


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[Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., 14.ª sec., cx. 5, doc. 11].



Aviso de Hermann para que as armas da Casa de Bragança fossem tiradas dos edifícios públicos (24 de Fevereiro de 1808)



Fevereiro, 24

Em consequência das ordens do Il.mo e Ex.mo Sr. General em Chefe do Exército francês em Portugal, remeto a Vossa Senhoria o decreto da cópia inclusa, assinada pelo conselheiro Guilherme da Costa Posser, oficial-maior da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, encarregando a V. S.ª da sua execução pelo que respeita às Armas da Casa de Bragança, que deverão ser tiradas de todos os edifícios públicos destes Reinos, em forma, porém, que esta operação não deturpe, seja a beleza do edifício, seja algum seu ornato principal de arquitectura ou escultura, que deverá conservar-se em toda a sua perfeição, quanto ser possa. Exceptuando-se da execução desta ordem as Armas da decoração da estátua equestre colocada na Praça do Comércio e quaisquer outras semelhantes; e exceptuando-se outrossim qualquer ornamento interior das igrejas. Também fica a cargo de V. S.ª a execução do abatimento de todas as tabuletas de privilégios, que são declarados insubsistentes e nulos. E a estes fins mandará V. S.ª sem perda de tempo passar as ordens necessárias.

Francisco António Hermann

[Fonte: Pinto de Carvalho (Tinop), Lisboa d'outros tempos - II - Os Cafés, Lisboa, Parceria António Maria Pereira Livraria Editora, 1898, p. 285].