sábado, 19 de março de 2011

Aviso da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e das Finanças à Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação destes Reinos e seus domínios (19 de Março de 1808)



Sendo presente ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe do Exército de Portugal que o primeiro terço da contribuição extraordinária de guerra, pela parte que é cometida à Real Junta do Comércio, não só deixou de satisfazer-se no prazo assinalado pelo decreto do 1.º de Fevereiro […] passado, mas na sua arrecadação se prossegue com tal demora e vagar que não permite esperar [que] se conclua em termo razoável, o que é inteiramente alheio das intenções de Sua Excelência: 

Manda o mesmo Senhor General em Chefe declarar à dita Junta que até ao último dia deste mês deve achar-se entrado na Caixa geral da contribuição todo o referido terço; para cujo fim a Junta tomará as medidas oportunas, pedindo qualquer auxílio, ou providência que entender necessária; na certeza de que ao contrário será inevitável que o Governo lance mão de meios mais rigorosos, e que façam mais pesado o ónus da mesma contribuição. 

E para constar a todas as pessoas que são responsáveis, se afixaram editais. 

Lisboa, 19 de Março de 1808. 


[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 12, 22 de Março de 1808].

Aranjuez, 19 de Março de 1808



Prisão de Godoy


Abdicação de Carlos IV e aclamação de Fernando VII


Gravuras de Zacarías Velázquez
[Fonte: Ilustración de Madrid (n.º monográfico «Dos de Mayo»), Ano III, n.º 7, Primavera 2008].

Proclamação do Comandante britânico Charles Cotton, dada a bordo do navio Hibernia, ancorado na foz do rio Tejo (18 de Março de 1808)



A todos os súbditos portugueses presentemente alistados no Exército e Marinha de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, faz saber o Comandante em Chefe da Esquadra Britânica que actualmente bloqueia os portos de Portugal, que ele tem navios de transporte prontos sobre as costas para tomar a seu bordo todos os sobreditos súbditos portugueses e suas famílias, e lhes oferece o sagrado penhor da fé britânica para a promessa que dá, de os fazer transportar imediatamente aos portos do Brasil, donde passam a Seu Legítimo adorado Soberano. 

Se os transportes não fossem logo bastantes para acomodar todos os que quisessem embarcar, o Comandante em Chefe permite que fiquem repartidos pelos navios de sua esquadra, até que cheguem transportes bastantes ou, se parecer mais conveniente, os remeterá a Falmouth para ali serem embarcados para o Brasil sem perda de tempo. 

Hibernia, a dezoito de Março de mil e oitocentos e oito. 

Comandante Cotton 

[Fonte: Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular), Lisboa, Tip. Inácio Pereira Rosa, 1941, pp. 414-415 (doc. 292); No Arquivo Histórico Militar (1.ª div., sec. 14.ª, cx 182, doc. 83, fl. 7) existe um exemplar impresso desta proclamação, com algumas variantes em relação ao texto recolhido por Alberto Iria].




Relação circunstanciada da Revolução de Espanha, segundo o Correio Braziliense





[Fonte: Correio Braziliense ou Armazem Literario - Vol. I, Londres, Impresso por W. Lewis, 1808, pp. 10-14; p. 91].

Manifesto imparcial y exacto de lo mas importante ocurrido em Aranjuez... (atribuído a Juan de Arias)

Acontecimentos memoráveis do Reinado de Carlos IV desde o ano de 1806 até 19 de Março de 1808, relativos ao Príncipe da Paz



O seguinte texto provém dum manuscrito da época, da autoria de José de Ascutia, o Guarda Real várias vezes citado por Ronald Fraser. Trata-se de um texto anti-godoyista que oferece uma visão algo tendenciosa sobre os acontecimentos de Aranjuez, precedidos por uma pequena contextualização. Certas passagens do texto induzem-nos a pensar que teria sido escrito logo após os motins de Aranjuez, possivelmente antes mesmo dos franceses entrarem em Madrid (no dia 23 de Março). Por esse motivo, vale pelo testemunho da confiança cega que então muitos espanhóis depositavam em boatos e rumores sobre as intenções de Napoleão em relação à deposição de Godoy e ao suposto apoio a Fernando, Príncipe das Astúrias, agora Fernando VII. Como testemunho anti-godoyista, apesar de deixar transparecer várias incoerências e incongruências, revela que havia um plano da alta nobreza espanhola para forçar a destituição de Godoy, cuja ocasião perfeita foi dada no momento em que Carlos IV decidiu partir para Cádis ou Sevilha. 



Acontecimentos memoráveis do Reinado de Carlos IV 
desde o ano de 1806 até 19 de Março de 1808, 
relativos ao Príncipe da Paz 


Na grave doença que padeceu Carlos IV no ano de 1806, Soler fez presente a Sua Majestade que era necessário fazer um testamento. Convencido disto, [Carlos IV] disse que esta disposição seria ordenada pela Rainha e pelo Príncipe da Paz, os quais assim o fizeram; e entre as suas cláusulas havia a seguinte: 

"Deserdo da Coroa o meu filho mais velho, D. Fernando, por [ser] fátuo; e pela menoridade do meu filho o Infante D. Carlos, nomeio o Príncipe da Paz como regente do Reino".

Uma boa pessoa que tomou conhecimento desta negociação artificiosa, participou-a sigilosamente ao Príncipe das Astúrias. Este, vencendo mil dificuldades, como carecia de liberdade escreveu uma carta ao cónego Escoiquiz, na qual lhe perguntava o que devia fazer nas actuais circunstâncias, ao ver-se tratado com o maior desprezo e tendo sido deserdado pelo seu pai, o que é que lhe aconselhava, como o esperava do seu carinho e talento. O cónego respondeu-lhe que aquilo requeria um conselho verbal, e doutro modo não podia responder-lhe. 

Continuou o Príncipe das Astúrias experimentando o maior rigor, sendo privando até de poder falar com o seu irmão Carlos. 

O Rei volta a ter o peito atacado em Janeiro de 1807, e vendo o Príncipe das Astúrias que o ocaso se aproximava, volta a escrever ao cónego, vencendo mil dificuldades para consegui-lo, e valendo-se do mesmo portador que tinha levado a carta anterior. Nesta nova carta, pressionava-lhe fortemente para que lhe desse o ditame. O cónego respondeu, dizendo-lhe que ele não era fátuo, e que estava jurado como Príncipe das Astúrias; e que pelas leis do Reino, não podia ser privado da Coroa; que procuraria falar com o duque del Infantado, a pessoa mais recomendável para o assunto, e de acordo com ele disporiam o que fosse conveniente. Através do mesmo portador que levava a carta, foi chamado o duque del Infantado. Este, tendo sido instruído, ordenou que o Príncipe das Astúrias lhe desse um decreto, nomeando-o General de Castela, e vários ofícios assinados em branco, para o duque preencher as nomeações, no caso de faltar o Rei, para fazer as eleições correspondentes para todas as Capitanias-Gerais e demais empregos entre pessoas idóneas, e outro decreto para prender o Príncipe da Paz. Este papéis foram conservados pelo duque, unidos ao seu próprio corpo, e assim foram salvos. 

Formado todo o plano pelo duque del Infantado e pelo cónego, determinaram prestar contas ao Imperador dos franceses, juntando uma carta do Príncipe das Astúrias, na qual lhe informava tudo o que tinha acontecido, mostrava-lhe o plano que estava feito e rogava-lhe que o protegesse, e que se o plano não estava bem feito, que [o Imperador] alterasse o que lhe parecesse [mais conveniente]. Esta carta foi para a Etrúria e daí em correio [...] para Paris através do marquês de la Romana, com conhecimento de O'Farril e da própria Rainha da Etrúria. 

Tendo isto transparecido nalguma parte, o Príncipe da Paz teceu intrigas, através do embaixador, para desacreditar O'Farril e Romana, e daqui principiou a revolução de Florença. O Imperador dos franceses, pelo mesmo portador, respondeu ao Príncipe das Astúrias, assegurando-lhe a sua protecção e que o plano estava muito bem formado. Neste estado deixa Napoleão este negócio, e parte para a Polónia, encarregando muito particularmente a Talleyrand acerca deste assunto, e sobre o que devia fazer se ocorresse alguma novidade na Espanha, e com o maior sigilo que tentasse ver se por algum meio podia conduzir o Príncipe das Astúrias a casar-se com algumas das pessoas reais daquela Corte [francesa]. 

O Príncipe da Paz, por algumas suspeitas que teve, escreveu a Izquierdo, que estava em Paris, para que procurasse tentar perceber se Talleyrand tinha correspondência com o Príncipe das Astúrias. Este intrigante finge com o ministro francês ser inimigo de Godoy e afeiçoado ao Príncipe das Astúrias; o ministro, de boa fé, disse supor que sabia já da íntima união do Imperador com o dito Príncipe das Astúrias. De boa fé, o ministro confiou-lhe algumas coisas, que foram bastantes para Izquierdo ter uma ideia. Este avisa o Príncipe da Paz que está perdido, pois o Imperador protege o das Astúrias. Quando Godoy recebeu esta carta, tentou sublevar o Reino, alucinar os Reis e declarar guerra à França, como de facto esteve algumas horas declarada, e se não tivesse sido Gil de Lemos, a declaração tinha sido levada a cabo. 
Volta o Imperador a Paris depois de tratada a Paz de Tilsit, fala com Talleyrand sobre a Corte de Espanha, e este conta e refere o episódio com Izquierdo. Penetra Napoleão na intriga, chateia-se com Talleyrand, e dispõe que se dirija a Madrid como embaixador o Ex.mo Sr. D. Beauharnais, a quem deu umas instruções muito particulares. Chama Izquierdo, e pergunta-lhe com que ordem se introduzia nos negócios de Estado, e este presta-lhe satisfações assumindo as ordens que tinha da sua Corte; não obstante, [Napoleão] manda-o sair imediatamente dos seus domínios. [Izquierdo] vem em diligência para Madrid, e diz a Godoy que está perdido, que o Príncipe das Astúrias tem a protecção de Napoleão, as tropas à sua disposição, e que se casa em Paris. De facto, adiou-se o casamento, houve mil dificuldades, e finalmente, depois da Rainha e Godoy terem resistido, respondeu-se afirmativamente.

Vendo Godoy que já não havia remédio, trama a atroz calúnia de difamação do Príncipe das Astúrias, com o fim de lhe cortar a cabeça ou pelo menos deixar-lhe desacreditado, quer para que não reinasse e para que a deserdação fosse levada a cabo, quer para que não se verificasse o casamento em Paris depois de estar  com esta nódoa. 

O Imperador, muito bem informado de todas estas tramas, tanto pelo duque de Frías como pelo embaixador, para preservar o Príncipe das Astúrias dos riscos que o ameaçavam, nomeou-o de Generalíssimo das tropas francesas e espanholas que se haviam de reunir para certos fins, para assim retirá-lo da Corte; ao que a sua mãe respondeu que não o queria para guerreiro.

Napoleão, quer pela palavra dada de protecção ao Príncipe das Astúrias, quer pela estima que sempre tem tido pela paz com a Espanha (e nestas actuais circunstâncias ainda mais), quer pela penetração na bastarda conduta de Godoy, da qual tinha os maiores testemunhos pela correspondência que tinha interceptado com os ingleses, [...] vê-se obrigado a mandar as suas tropas para a Espanha, e a vir pessoalmente derrubar este colosso, aparentando outros desígnios para que não se lhe escapasse. 

Vendo o traidor que todas as suas maquinações estavam descobertas, apela à última para pôr-se a coberto do tecido de maldades que a sua vida envolve, ao que muito contribuiu a muita vontade do Rei, que julgava que Manuel era impecável, chegando a tanto a confiança de Sua Majestade, que se o embaixador da França não o pedisse no próprio acto da prisão, a pessoa do Príncipe das Astúrias tinha sido decapitada, como igualmente teria se não tivesse intervido na causa que se lhe tinha formado um atroz sumário que teria privado da vida muitos homens verdadeiramente ilustres e virtuosos, não tendo bastado nem a clareza com que o Infante D. António falou ao seu irmão [Carlos IV] para desfazer a falsa impressão que tinha formado, nem outras várias sessões[?], tendo chegado a tal a cegueira do tirano, que fez o fiscal Viegas assinar sem ler a resposta na qual lhe pedia monstruosidades. Obrigado à França por tudo! Os espanhóis, muito capazes de qualquer obra grande, estavam atados, não podiam respirar, e assim, quando viram um pouco de claridade, empreenderam a brilhante acção que ocorreu por consequência desta última trama, e é como se segue: 

Dado tudo o que anteriormente foi dito (e manifestado nos papéis públicos), tentou Godoy abandonar este Reino à sorte. Tratou com os ingleses para lhes entregar algumas praças de Espanha e a esquadra de Cartagena, dispôs-se a levar consigo para a América os velhos Reis, e na confusão que daqui infalivelmente resultaria, extinguir o resto dos Borbons. 

Para realizar este iníquo plano, deu, como [chefe] absoluto do Governo, todas as ordens oportunas para o desígnio: repartiu o seu quantioso tesouro nos bancos da Europa [...]. Ordenou que o exército que estava em Portugal, passasse rapidamente, sem ordem do Rei, a Toledo, a fim de entreter o exército francês, obrigando-o a opor-se e empenhando-o tanto com este exército como com as tropas inglesas e as argelinas (que tinham combinado com a Inglaterra), qu entrariam na Espanha apoderando-se de Ceuta e Cádis; e entretanto Godoy fugia com os velhos Reis. Igualmente meditava coroar-se no México, ou imediatamente, como ficou manifestado quando foram encontradas (segundo se afirma) moedas cunhadas em seu nome como Rei de Espanha e Imperador do México*, ou somente depois de mortos os velhos Reis. 

Não pôde dispor este plano sem que se apercebessem tanto os leais espanhóis como a Corte da França, que era contrário a outros fins anteriormente concertados pelas duas Cortes. Ordena Napoleão para que os exércitos se dirijam à Espanha para estorvar esta cruel cena, separar Godoy do Governo e coroar Fernando VII. Os Generais e as tropas francesas ignoravam qual era o objectivo principal que tinham. [Napoleão] deu ao embaixador que residia na Corte de Espanha as ordens convenientes para tudo, instruindo-lhe até ao mais ínfimo pormenor. Ao Almirante da esquadra francesa que estava no porto de Cádis deu-lhe ordens para não permitir, mesmo que isso implicasse sacrificar a sua esquadra, que saísse do dito porto embarcação alguma. Toda esta inaudita maldade [isto é, o plano de fuga de Godoy] estava combinada entre Godoy e os ingleses para o dia 27 de Março; estava também composta a proclamação que fariam os velhos Reis, da urgente necessidade de saírem da Espanha para salvar as suas vidas da ira dos franceses, que enquanto isto não se acalmava e voltassem ao seu trono, deixavam como regente em Espanha o Ex.mo Sr. Duque de Almodovar del Campo [irmão de Godoy]. Foi já depois de organizado este suposto plano, sem esperar outra coisa do que a chegada do referido dia 27, assinalado pelos ingleses, que Godoy o propôs ao Rei (com quem contava como coisa segura), quando já tinha armado todo o Reino espanhol contra os franceses, espalhando rumores vis e vagos que a sua malignidade fazia publicar, dando ordens e contra-ordens para desconcertar os franceses.  

Nestas circunstâncias, (pela providência de Deus) foi desfeita toda esta máquina, por uns poucos vassalos leais e fiéis militares organizados pelos grandes do Reino, apoiados no sempre recomendável Conselho de Castela, sem que os franceses tenham tido mais arte nesta gloriosa acção do que terem provocado a antecipação do projecto pela entrada das suas tropas, tanto pelo medo que teve o tirano, desconcertando-lhe o movimento das tropas francesas, como pelos remorsos da sua péssima consciência. 
O conde de Teba estava em Portugal com o seu Regimento, sem poder entrar em Madrid por ser um dos desterrados. O duque del Infantado encontrava-se em Écija cumprindo o seu desterro. Por certa pessoa foi este último instruído de toda a maquinação, a fim de que, como cabecilha de toda esta história, desse as ordens oportunas. Pensou sobre qual sujeito seria mais apropriado para executar o que tinha meditado. Elege [o conde de] Teba e manda chamá-lo a Portugal; Teba vem imediatamente a Écija em diligência, e apresenta-se ao duque del Infantado, que pergunta-lhe se se atrevia a ir a Madrid para dar parte ao Conselho da trama que estava urdida e reunir toda a grandeza para impedir a saída dos Reis de Espanha. Responde-lhe Teba que se atrevia, e recebendo as instruções de Infantado, disfarça-se em traje de manchengo [natural de La Mancha] e parte para a Corte em diligência. Com aquele traje vai à casa de Sierra, fiscal do Conselho, e diz-lhe que é necessário que o Conselho se reúna, e que se oponha a todo o plano que medita Godoy. O fiscal responde-lhe que juntar o Conselho é o menos, mas para que formule um decreto é necessário que se faça uma representação na qual se exponha tudo o que ele dizia. Sierra pergunta-lhe se via algum inconveniente em que se fizesse a representação em seu nome, ao que Teba respondeu que não o via, e nem mesmo em apresentar-se pessoalmente ao Conselho. Ali fez-se a representação, e ali a jurou Teba. Com isto se convocou o Conselho, que foi perfeitamente instruído pela representação, e decretou com firmeza que não tendo o Rei motivos para sair de Espanha, não se lhe permitiria de modo algum a saída. 
O manchego [conde de Teba], tendo recolhido o decreto do Conselho, convocou uma junta de grandes de Espanha, à qual concorreram 19. Concordaram e comprometeram-se todos com as suas rendas e pessoas não só a impedir a saída dos Reis, mas também a aniquilar o traidor Godoy; acordaram igualmente que era indispensável que alguém se dirigisse ao sítio para entregar a representação e o decreto do Conselho ao Rei. Nisto houve muitas dificuldades, mas resolveu-se que fosse o marquês de Castelar, o qual partiu e falou com o Rei, cujo medo que tinha dos franceses se desvaneceu, e cujo resultado foi a proclamação que trouxe a Gazeta**. 
Neste mesmo dia 13 pela tarde, voltou Godoy ao sítio, propôs aos Reis que era preciso sair para Cádis ou Sevilha para estarem mais próximos para o embarque, que assim convinha para evitar que Napoleão lhes usurpasse o trono, pois aproximava-se a sua chegada, e as tropas estavam já em cima. O Rei respondeu a isto não só manifestando-lhe o decreto do Conselho mas também lendo-lhe uma carta de Napoleão na qual lhe dizia que vinha à Espanha para o seu bem. Pede o traidor ao Rei que junte ali mesmo um Conselho, que Sua Majestade veria como o que ele propunha era conveniente, e que não devia ter confiança nem na carta de Napoleão, nem no decreto do Conselho; e que ele amava o seu Rei. Formou-se um Conselho com os ministros patriarcas e outros, à excepção do Ministro da Guerra e de Caballero, que estavam passeando, e pelo Conselho determinou-se a fuga, assinando todos a resolução. 
A assinatura de Caballero era indispensável para a solenidade desta determinação. Godoy recolheu os papéis para que Caballero os assinasse na noite daquele dia 14. Ao entrar [no Palácio] Caballero, vindo do passeio, encontra Godoy, que lhe diz "tem ali aqueles papéis, assine-os que tem ali um tinteiro". Caballero disse-lhe que não os assinava sem ler, e impôs-se. [Disse Godoy:] "pois bem, leia-os Vossa Mercê, e eu espero ali". Caballero aproximou-se dum candeeiro que estava por perto, e ficou a lê-los; [depois,] volta-se para Godoy, e diz-lhe que não assinava, e [perguntando] quem tinha aconselhado o Rei (desentendendo-se que tinha sido ele) a semelhante traição e vileza, que aquilo era enganar o Rei sacrilegamente e que, assim, ali tinha os papéis [não assinados]. Godoy, que encontrou esta resposta com um valor e firmeza como jamais tinha experimentado, saca da espada, mas antes que a acabasse de desembainhar, já lhe tinha posto Caballero uma pistola junto ao peito, dizendo-lhe que se acabasse de sacar a espada, acabaria com a sua vida com um tiro. Deteve-se Godoy, e com a disputa sobre a assinatura, chegam ao quarto do Rei. Godoy, cheio de cólera, vendo-se desobedecido e ultrajado em termos que jamais poderia ter imaginado, queixou-se ao Rei de que Caballero não queria assinar o que tinha sido acordado por Sua Majestade e pelo Conselho. O Rei censurou docemente Caballero, perguntando-lhe que motivos tinha para não assinar, ao que respondeu ele que amava verdadeiramente a Sua Majestade, que não era falso traidor como era o que lhe tinha aconselhado um absurdo como o que lhe tinham proposto, que não havia porquê temer os franceses, como muito bem constava a Sua Majestade, ao Conselho de Castela, e à maior parte da nação, e que não havia a menor suspeita para uma tão atroz determinação; e voltando-se para Godoy, disse-lhe que "quando Caballero diz que não convém uma coisa, é porque sabe o que diz e porque pode sustentá-lo; e assim, antes darei a vida com gosto, do que assinar a maior maldade que se inventou". Vendo o Rei esta discórdia, e convencido por Caballero, mandou ali mesmo juntar o Conselho por uma segunda vez, cujos membros foram convocados. Caballero foi o primeiro a faltar, e dirigindo a sua palavra ao Rei, disse: "Senhor, já é tempo de falar abertamente a Vossa Majestade; as tristes circunstâncias que nos rodeiam o requerem. O senhor (apontando para Godoy) é um traidor, é quem formou esta trama para os seus fins particulares, a vida do sr. é esta"; e fez ao Rei um retrato muito vivo de Godoy, e volta-se para ele ainda conservando o calor que pelo episódio antecedente se pode calcular, e disse "se Vossa Mercê quer partir, vá, que é um favor que faz ao Reino. Você não sabe o que é um Reino, não sabe mais do que entrar e sair do Palácio". Com isto, os demais ministros tomaram asas e disseram ao Rei o que tinham calado durante mais de 15 anos. Sua Majestade, completamente confuso, mandou que imediatamente se consultasse o Conselho de Castela. Mandou Caballero consultá-lo, que chegou a Madrid no dia 15 de Março às 9 da manhã.  
Juntou-se o Conselho imediatamente, e às 3 da tarde, concluiu-se já quase com as rédeas do Governo nas suas mãos, determinando repetir o decreto anteriormente referido, que se despachou em seguida, mandando o Conselho por si que as tropas de Madrid fossem ao amanhecer ao sítio para impedir qualquer alvoroço. Decretou igualmente a prisão do Príncipe da Paz, entregando este decreto ao marquês de Castelar, fundando-o o Conselho no conhecimento que já tinha de tudo desde a primeira representação que lhe foi feita. 
O manchego [conde de Teba], ao ter tido conhecimento de que na noite do dia 15 tinha Godoy voltado ao Palácio, e com novas intrigas feito vacilar ao Rei, e quase convencendo-o; e entre as muitas coisas com que intimidava Sua Majestade, era que a Corte de Madrid estava sublevada contra ele, e como [Teba] não duvidava que o Rei, apesar do que se tinha passado, havia de seguir o ditame de Godoy, dispôs juntamente com Castelar para que este fosse a Madrid formar uma junta sob a determinação do Conselho, enquanto aquele ia convocar gente em seu auxílio, e para que tudo fosse disposto do melhor modo.  
Teba, disfarçado, dirigiu-se a todas as povoações da comarca, fingindo ser uma vez de tal parte, e noutras vezes de outra, e que vinha pedir que os leais manchegos [naturais de La Mancha] o acompanhassem para impedir que os Reis fugissem e os deixassem desamparados; com estas proposições, trouxe consigo até os velhos, determinados a morrer antes de permitirem que Suas Majestades se fossem embora. Ao regressar desta expedição, já estava ali Castelar, e determinaram não só exigir palavra de honra mas também juramento formal aos chefes das tropas convocadas a defender a saída dos Reis, e não somente não obedecer às ordens do Generalíssimo [Godoy], mas também prendê-lo pelo decreto do Conselho de Castela, que Castelar já tinha entregado ao manchego, depois da consulta feita pelo Rei no dia 15. No dia 16 estava já Godoy completamente desconcertado, e naquela noite volta ao Palácio, e forma as últimas tropas, pois na noite do dia 17 levaria os Reis ocultos, e juntos fugiriam; para cujo fim comunicou as devidas ordens, para que no mesmo dia partissem (como se verificou) a Tudó, [o padre] Duro e outros, para se reunirem em Cádis. Neste momento, tudo estava já bem claro para o Conselho e para os grandes, que tinham previsto todos os pontos, e nada se lhes escapava. 
Chega com efeito a noite de 17, na qual devia realizar-se o último dos atentados, e em que tudo estava disposto, tanto por parte do Almirante [Godoy] para a sua fuga, como da parte dos opositores deste horroroso desígnio. 
Por volta da uma da madrugada dispara-se uma pistola dentro do Palácio Real, e logo a seguir saiu o Príncipe das Astúrias com uma luz do seu quarto, acompanhado de alguns guardas que diziam "traição, traição"; seguem-no outros muitos; deixou todas as portas do Palácio bem custodiadas, para não deixar sair pessoa alguma, voltando depois ao seu quarto. Os paisanos e a tropa que estavam na parte de fora acudiram prontamente ao ouvir o tiro, cercaram o Palácio e aumentaram as guardas nas suas portas, no lado de fora, ficando de tal modo que que nem por portas nem varandas podia escapar quem tentasse sair. Depois deste alvoroço, uma guarda de honra que se dirigia a uma porta falsa do Palácio Real, teve contestações e contendas com outras guardas valonas que estavam antecipadamente a guardar a dita porta. A este barulho acudiu o manchego [conde de Teba], com um grande número de paisanos, que se lançaram à guarda de honra (comandada por Osório, que era carabinero) com paus e pedradas, arrojando-os e perseguindo-os até à porta do Palácio de Godoy. Este foi cercado imediatamente, saindo à sua porta D. Diego Godoy aos gritos, mandando a tropa da guarda abrir fogo; põe-se à frente o chefe das guardas valonas que ali iam e diz a [Diego] Godoy que se a sua tropa abre fogo a sua também o fará, mas que ele não traz a sua tropa para fazer isso, a não ser para aqueles que resistam e que se oponham às ordens que tem. Volta D. Diego a mandar abrir fogo, e o oficial da sua guarda, longe de obedecer, manda descansar sobre as armas, não podendo conter o impulso dos paisanos; atropelam estes a guarda de honra, entram no Palácio, D. Diego resiste e manda usar as armas; dão-lhe duas fortes pancadas com a culatra, atiram-no ao chão, e levam-no ao quartel, mas da guarda espanhola; aqui não o querem receber, e mandam-no ao das valonas. 
A tropa e a paisanagem passam a revistar todo o Palácio, em busca do Príncipe da Paz; não o encontram, mas sim a Princesa, em trajes menores. O manchego [conde de Teba] diz-lhe para não se assustar e para se vestir; e com toda a honra levam-na ao Palácio Real e entregam-na aos Reis, sem se terem apresentado a estes mais do que os manchegos, deixando entretanto tudo bem custodiado, para que não fugisse o réu. No dormitório da Princesa da Paz encontrou-se um papel do marido, em que a encarregava que tivesse cuidado com a sua filha, que ele, para salvar a vida, partia. 
Volta como um raio o manchego ao Palácio de Godoy, e vendo que não o encontrava, julga que fugiu, e apesar de ter tomado todos os caminhos e saídas com a tropa e paisanos, põe-se a caminho de Ocaña. Aí apresenta-se ao Corregedor, pergunta-lhe se o conhece, e diz-lhe o Corregedor que não; dá-se a conhecer ligeiramente, e informa-o acerca do objectivo da sua comissão, do estado em se encontrava o sítio, e que era preciso assim que lhe dissesse se tinha passado por ali Godoy, ao que o Corregedor lhe afirmou que não, e que se necessitava gente, garantia que um grito bastaria para ter todo o povo armado. Disse o manchego que ele não queria alvoroço, e que se passasse por ali Godoy, que o prendesse porque havia ordem para isso, lendo-lhe o decreto do Conselho, que levava prevenido. E feita esta diligência não se apeou nem se deteve até chegar a Madridejos; e aí repete com o alcaide as mesmas palavras que tivera com o corregedor de Ocaña, mas este diz-lhe que na pousada há uns coches e carruagens de personalidades, e que ele não conhece Godoy. O manchego faz a sua descrição, e roga-lhe para passar pela pousada para reconhecer aquelas pessoas, e ver se entre elas vem Godoy, enquanto ele fica à espera. O alcaide foi à pousada, e pela descrição que trouxe de volta percebeu o manchego que eram as senhoras Tudó e o padre Duro. Disse que nada queria com senhoras, e mandou emissários com avisos para Écija, e outros para o sítio. Daqui passou a reconhecer os apeadeiros, e à distância de 5 léguas encontrou um guarda com outros que regressavam depois de terem executado essas mesmas diligências; ficando assim convencido de que o pássaro não tinha saído da Corte. Determinou voltar e não descansar enquanto não se repetissem no sítio as mais escrupulosas revistas de toda a vizinhança e das paragens onde se supusera que se podia ocultar; alimentou-se um pouco e sem se despir descansou num aposento, deixando fechado o Palácio de Godoy e dando as devidas ordens para tudo o que pudesse ocorrer. 
No dia 19, por volta das 9 da manhã, dois soldados da guarda valona, um chamado Rodríguez e outro Aillon, reparam que um soldado sobe pelas últimas escadas com uma taça de chocolate: chamam-no e perguntam-lhe para quem é que é aquele chocolate. O homem, meio perturbado, respondeu-lhes que era para um enfermo, mas aqueles replicam-lhe "que enfermo, quando não há um cristão em toda a casa?" Já desconfiado, determina Aillon que o seu companheiro faça a guarda àquele homem, e este continuou subindo as escadas com a taça de chocolate, afirmando que quem o esperava, sairia ao sentir os passos; com efeito, saiu Godoy com duas pistolas nas mãos, de calças negras e chapéu de copa alta e um casacão, e perguntou muito desfalecido ao soldado se queria trocar a casaca, ao que o soldado, sem se intimidar, respondeu que a casaca não era sua, que era do Rei; desceu um pouco o soldado e deu gritos; sobem os demais e encontram-no num desvão, envolto numa esteira e as pistolas numa pouca cinza. Alvoroça-se a casa, comunica-se ao povo o alvoroço, acode uma numerosa multidão carregando sobre ele, e comunica-se ao Rei. Este, aturdido por este barulho e algazarra, manda o seu filho, e autoriza-o para que fosse e fizesse tudo quanto podia fazer. Saiu o Príncipe com 4 guardas, e metido entre o povo, levando empurrões, encontrou o réu, que era trazido preso e vinha ferido e feito numa miséria. Ordenou o Príncipe que o deixassem, pois convinha que falasse, e apesar de tudo era tal o encarniçamento do povo que mesmo na sua presença maltrataram-no. Deste modo foi conduzido ao quartel das guardas reais, e ali disse ao Príncipe:"perdão, Senhor! Misericórdia, misericórdia!" Respondeu-lhe o Príncipe que todos os ultrages e atentados cometidos contra a sua pessoa estavam perdoados, mas que o Conselho era quem o havia de julgar. Continuando o alvoroço, sem afastar-se o povo do quartel, determinaram os Reis que o réu passasse a Alhambra de Granada. Estava já o coche pronto, cresceu o alvoroço do povo, pedindo aos gritos a cabeça de Godoy, e tirando as mulas desfizeram o coche em mil pedaços. O Rei, o Príncipe e Caballero, estavam atrás dos vidros de uma varanda vendo esta tragédia: diz o Rei ao seu filho, todo comovido: "a ti te querem, Príncipe, tu dispõe, que eu não estou para isto, vai e sossega essa gente". Caballero disse ao Rei que não podia o Príncipe fazer coisa alguma, que para isso era indispensável um decreto de abdicação da coroa. Livre e espontaneamente, disse o Rei no mesmo instante: não tinha acabado Sua Majestade de pronunciá-lo, quando já o ministro estava compondo-o, de modo que ali mesmo foi assinado pelo Rei, sem a Rainha o saber nem perceber, pois fugindo dos gritos tinha ido para os quartos opostos.
Caballero, já com o decreto assinado, juntou o Conselho imediatamente, publicou-o, e foi Fernando VII aclamado no sítio. 
Uma dama, tendo ouvido a aclamação de Fernando VII, avisou a Rainha: vem esta já feita uma víbora, mas já não há remédio, sem demora passaram-se os decretos ao Conselho de Castela, e por uma rara providência do Céu, organizou-se numa hora sem derramar uma gota de sangue o que não tinha podido verificar-se em muitos anos.
[Fonte: A. Rodríguez Moñino, "Relato de la caida de Godoy por un testigo presencial", in Revista de Estudios Extremeños, Tomo XIV, n.º III, Badajoz, Septiembre-Diciembre 1958, pp. 3-16].



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Notas:


* Ver o que ficou dito atrás sobre um boato semelhante.


** Deve notar-se que a proclamação de Carlos IV (aqui traduzida) data somente de 16 de Março.

Os acontecimentos de Aranjuez, segundo Godoy