sábado, 14 de maio de 2011

Extracto de uma carta de Lisboa publicado no Correio Braziliense (14 de Maio de 1808)



Lisboa, 14 de Maio 


Alguns artigos têm aqui subido a um ponto extraordinário: o algodão está a 600 réis a libra, e no Porto a 700 réis; a manteiga custa de 500 a 600 réis a libra. 
Há poucos dias entrou no Porto um navio de Rostock [Alemanha], e vindo um bote cheio de gente a abordá-lo, o Capitão supôs que eram ladrões, e fez-lhes fogo, com o que malferiu alguns; em consequência deste desacato, foi o dito Capitão preso e o navio embargado, mas não sabemos ainda qual será o resultado. 

[Fonte: Correio Braziliense - Vol. I, Londres, Impresso por W. Lewis, Junho de 1808, p. 73].


Notícia publicada na Gazeta de Lisboa sobre as intrigas no seio da Corte espanhola (14 de Maio de 1808)



El-Rei Carlos IV e a Rainha de Espanha sua esposa, chegaram a Bayonne a 2 deste mês, e foram ali recebidos com salvas de artilharia. Foram sair-lhes ao encontro o Príncipe de Neuchatel e os Camaristas do Imperador, e entraram acompanhados de mais algumas carruagens, numa das quais se achava o Príncipe das Astúrias e o Infante seu irmão; noutra delas estava o Príncipe da Paz.
Uma hora depois da chegada de El-Rei e da Rainha, foi o Imperador fazer-lhes uma visita que durou coisa de uma hora. No dia seguinte, Carlos IV e a sua esposa foram jantar com Sua Majestade.
É agora certo que El-Rei Carlos IV protestou, em data de 17 de Abril, contra a sua abdicação forçada, declarando-a por nula; e recorreu ao Imperador dos franceses contra a violência que lhe fizera seu filho.
Declara Carlos IV que só para salvar a sua vida e a da Rainha é que ele deu mostras de depor momentaneamente o poder nas mãos de seu filho, o qual dele se aproveitou para ir fazer-se coroar em Madrid, e para prender num convento seu pai e seu Rei.
De uma carta de Sua Majestade o Imperador e Rei Napoleão ao Príncipe das Astúrias, resulta que ele vituperou sempre a revolta de Aranjuez, não vendo nela senão um ultraje feito aos direitos do Trono. Sua Majestade, nesta carta, em que vai felizmente de mistura o decoro com a severidade, e que é uma obra prima comparável com o que há de mais belo neste género, dá a conhecer ao jovem Príncipe que o processo que ele intentara formar ao Príncipe da Paz era não menos que o de seu pai e de sua mãe.
Enquanto ao mais, Sua Majestade nada quis decidir sem primeiro ter ouvido as ilustres partes, e na própria cidade de Bayonne é que se vai julgar esta grande causa, em cujo êxito estão fitos os olhos da Europa.
Ao mesmo tempo consta, por notícias recebidas de Madrid pelo correio que chegou ontem de manhã, que a tranquilidade ficava ali perfeitamente restabelecida, por efeito das medidas de vigor tomadas por Sua Alteza Imperial o Grão-Duque de Berg, havendo sido desarmada toda a vila. As províncias vizinhas repeliram a voz de sedição que fizeram soar entre elas alguns cúmplices dos assassínios cometidos em Madrid. A opinião pública se declarava fortemente contra aqueles que tentaram, por um instante, misturar o fogo da guerra civil com o de uma guerra estrangeira, sobejamente desigual; e a nação espanhola, iluminada a respeito dos seus verdadeiros interesses, dava indícios de conhecer o quão necessário era esperar confiadamente os resultados da augusta mediação, sem a qual, dividida entre os seus próprios Soberanos, e não sabendo onde pudesse encontrar um ponto de apoio, ia a precipitar-se no abismo das revoluções e nos desastres da anarquia a mais horrível.

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[Fonte: Segundo Supplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 19, 14 de Maio de 1808].

Notícia publicada na Gazeta de Lisboa, relativa à carta da deputação portuguesa e aos novos decretos de Junot (14 de Maio de 1808)






Lisboa, 14 de Maio


Em todas as partes públicas desta cidade se vê hoje afixada a memória da deputação portuguesa aos seus concidadãos, tal qual a demos ontem. Esta peça é lida por todos os habitantes com um ardor igual ao reconhecimento que ela inspira para com Sua Majestade o Imperador e Rei: Portugal ficará sendo uma nação separada e independente de qualquer outra influência afora a do Dominador da Europa! Eis aqui a nova que cada um repete com alegria, e que dando a certeza dum futuro venturoso, põe o remate a todos os desejos.
Cada um conhece que nesta ocasião em especial é que aqueles que aconselhassem motins e que excitassem sedições, a existirem alguns secretamente entre nós, seriam na verdade inimigos públicos, pois que os seus esforços tenderiam a não menos que a comprometer os destinos deste país. Portanto, as agitações de um pequeno número de facciosos em Espanha servem aos portugueses de novo motivo para ficarem sossegados, visto que daqui lhes resulta maior mérito no conceito do Imperador, pelo contraste que oferecem o extravio de uma plebe momentaneamente alucinada e prontamente punida, e a disposição constantemente prudente e pacífica de um povo que tudo espera do Governo em quem põe a sua confiança.
Lisboa, neste sentido, compete com as províncias e, a exceptuarem-se alguns roubos parciais cometidos por desertores que voltam de todas as partes, desde que saiu o último decreto do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque de Abrantes já mais houve menos desordens no Reino.
Enquanto ao mais, para acelerar a sentença dos criminosos, sejam quais forem, acaba de publicar Sua Excelência o Governador Geral o decreto seguinte, que é o complemento do de 8 de Abril […] passado.




[Fonte: Segundo Supplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 19, 14 de Maio de 1808].

Carta de Geoffroy Saint-Hilaire às senhoritas Petit, tias-avós da sua esposa (14 de Maio de 1808)



Venda do Duque, 14 de Maio.


Excelentes e caras tias:

O meu jantar está a ser preparado pelos meus companheiros num albergue bastante mau dum lugar chamado Venda do Duque; aproveito o tempo livro que me é permitido para vos escrever. Bem sabeis, minhas boas tias, que sou ternamente afeiçoado a vós, e podeis assim ter uma ideia da satisfação que tenho em consagrar-vos todos os meus pensamentos durante o descanso das pessoas e animais que nos acompanham e conduzem.
No dia 30 de Abril, encontrámos um grupo de frades e duas viajantes no albergue do pequeno lugar de Ventas del Malcaso, que tinha somente dois quartos. Os frades, que lisonjeei da melhor forma que pude ao falar-lhes em latim, e sobretudo aparentado ser partidário da revolução que tinha estabelecido Fernando VII sobre o trono, recusaram-se a emprestar-me o seu quarto para aí tomarmos a nossa refeição: precisavam de dormir. As duas viajantes indignaram-se com tal egoísmo e convidaram-nos a usar o seu quarto. Uma dessas senhoras, esposa de um oficial superior, disse-nos: «Não há que esperar desta canalha senão procedimentos indignos: são a lepra da Espanha; espero que o meu caro Bonaparte nos livre deles. Eis o meu herói - acrescentou ela - , contemplo o [seu] retrato sempre que tenho oportunidade. Como ele é o ser pelo qual me apaixonei excessivamente, digo francamente os erros que lhe conheço. Havíamos destruído o tirano na pessoa do Príncipe da Paz [Godoy]. Porque é que ele permite a existência desse monstro? Sabei que aspirei por um momento a  ser a Judite de Espanha: vedes-me fresca e dotada de algum charme, a crer nos cumprimentos dos cavalheiros. O monstro tinha como única ocupação desonrar os leitos conjugais das famílias mais estimáveis de Madrid. Vou vos dizer que também procurei agradar-lhe: se fosse necessário, teria sofrido a mácula do meu inimigo para assegurar-me melhor do golpe que teria desembaraçado a Espanha deste outro Holofernes. Mas devo confessar que, para minha vergonha, o meu charme não surtiu efeito e, se interiormente fiquei corada por não ser a mais bela das espanholas, é porque não me foi possível fazer a       mais bela e a mais útil das acções».
Ainda que eu não aprovasse esta efervescência, estas palavras ditas com energia e com uma calma que anunciava uma mulher superior, levaram-nos a estimar a bela espanhola. Tudo o que tínhamos de precioso em vinho de Bordéus e em provisões foi desempacotado; e demos-lhe uma refeição perfeita para a circunstância, o que fez enraivecer os frades, que viram que com um pouco de complacência teriam podido regalar-se com os nossos víveres.
Não foi este o nosso único encontro com uma senhora espanhola: ao termos que atravessar um bosque durante quatro horas, entre San Pedro e Mérida, conhecido pelo nome de Confessionário [Confessonario(ou seja, o lugar onde os ladrões fazem os viajantes confessar o que possuem para lho roubar), bosque esse onde se tinha cometido um roubo três dias antes da nossa passagem, julgámos que era apropriado irmos pedir a um oficial espanhol que estava encarregado do cofre do seu regimento e que, por consequência, tinha escolta, para permitir que marchássemos juntamente com ele. No seu carro estava a sua mulher amamentando um bebé e uma filha de cinco anos. Não tínhamos percorrido uma légua quando os cavalos da sua viatura fizeram uma travagem brusca, provocando um grave acidente. Recolhemos na nossa carruagem a senhora e as crianças com tanta cortesia e cuidados que ela não sabia como nos demonstrar toda a sua gratidão. Dois dias mais tarde, ficámos muito felizes por termos prestado esse serviço, porque recebemos um pagamento cem vezes maior; beneficiámos pela nossa parte das boas graças dos naturais da região, e a pronta gratidão da nossa senhora granjeou-nos partidários calorosos e úteis entre a boa sociedade de Mérida. 
Outro caso que não vos dará uma ideia nobre da Espanha: A justiça está excessivamente corrompida, e eis uma prova. O juiz – prefeito da cidade de Trujillo – não permite que nenhum cidadão tenha um albergue; possui uma casa grande que está convertida num estabelecimento desse género, fazendo-a explorar por alguns infelizes hipotecados, enquanto ele fica numa casinha perto da casa grande. O viajante é forçado a utilizar o seu albergue; ele aluga-o muito caro e refaz o arrendamento semanalmente, esperando ganhar cada vez mais. O arrendatário não dispõe de móveis, de provisões, enfim, de nada para uso dos viajantes. Se quer jantar, dizem-lhe: dai-nos dinheiro para comprar pão, vinho, sal, vinagre, ovos, etc., etc., e para o aluguer dos utensílios de cozinha. Quando acaba de jantar, tudo isso é contado pelo quádruplo do que pagaria se o tivesse comprado ele próprio, e depois pedem-lhe dinheiro pelo trabalho da patroa, dinheiro pelo quarto, dinheiro pelo barulho que se fez e, se é de noite, dinheiro para a luz, dinheiro para a cama… tal é o costume. As despesas que já eram muito exageradas nos outros albergues do caminho elevaram-se ao quádruplo em Trujillo; quisemos regatear: «Vós não saireis, responderam-nos. – Mas vamos até à casa do juiz-prefeito. – Fazei-o, responderam, ele é o dono do albergue; vai pedir-vos dinheiro para fazer as facturas, e pronunciar-se-á a nosso favor; porque tal é a condição do contrato que fizemos com ele!». Como demos dinheiro pelo barulho feito na casa, quisemos que esse dinheiro fosse ao menos bem adquirido pelo dono do albergue, e fizemos bastante barulho; mas como era preciso prosseguir o caminho, pagámos.
Já não tenho espaço, minhas caras tias, para começar a contar-vos um quarto episódio; além do mais, escuso de gastar todas as minhas provisões de uma só vez. Quando estiver reunido convosco, contar-vos-ei tanto quanto fordes pacientes para me ouvir. Infelizmente, estou demasiado longe para desfrutar da felicidade de vos rever [nos próximos tempos]. Há dois meses que estou afastado de vós e da vossa querida e boa sobrinha; mas enfim, paciência! até àquele momento feliz de vos beijar e de vos fazer ver todo o afecto vivo, sincero e respeitoso que tenho por vós. 

Geoffroy Saint-Hilaire

[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 39-41].