terça-feira, 7 de junho de 2011

Aviso publicado na Gazeta de Lisboa de 7 de Junho de 1808



[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 23, 7 de Junho de 1808].


Notícias publicadas na Gazeta de Lisboa, relativas aos acontecimentos na Espanha e aos "intuitos benéficos" de Napoleão (7 de Junho de 1808)




Lisboa, 7 de Junho 


Estamos autorizados para publicar como autênticas as peças seguintes, que aclaram muito os intuitos benéficos de Sua Majestade o Imperador e Rei relativamente à Espanha e à sorte que lhe destina. Sua Majestade Imperial quer pessoalmente ouvir os homens notáveis daquela Monarquia sobre as instituições que mais lhe convém. Não é um conquistador que se adianta por entre povos vencidos: é um legislador que, querendo escorar-se só na sua missão evidentemente celeste e aos direitos que lhe cederam os antigos Soberanos do país, vem a suprir à sua falta de poder e de energia, e salvar uma nação, que estima, dos horrores de uma revolução que as injustiças e divisões do seu governo haveriam tornado inevitável. A Espanha não tem agora outro Rei senão Napoleão o Grande*: toda a resistência às suas ordens ou às ordens daqueles que o representam, vêm a ser pois um crime tão contrário às leis da Monarquia como às da Religião, a qual manda obedecer aos soberanos da terra, sem que pertença aos indivíduos contestar o que o Céu permite. 
Como é possível que entre uma nação que faz glória de ser essencialmente Católica possa haver apologistas da sedição e da revolta? Como é possível que haja Ministros de um Deus de paz que preguem pela própria boca a guerra, e a mais horrível de todas as guerras, qual é a guerra civil? Acaso poderão deixar de reconhecer que um tal procedimento, especialmente no século em que vivemos, seria trazer sobre si a sua ruína, largar, aniquilar pelas suas próprias mãos o carácter sagrado de que estão revestidos, e dar contra si armas aos seus inimigos? Lembrem-se os de entre eles que quiserem abusar da sua influência para persuadir ao povo o desprezo da autoridade legítima, que a revolução da França começara assim; que acabara deixando ali quase destruída a Religião Católica, e que ao braço muito poderoso de Napoleão é que o culto dos nossos pais deveu a sua nova vida naquele vasto Império! 
Que são essas Juntas que alguns perturbadores cobiçosos de poder e de turbulências, têm, como se diz, tentado formar em algumas cidades da Espanha? São umas verdadeiras Juntas revolucionárias, da família daquelas que espalharam tantos desastres pela França. De que poderiam elas servir senão de converter amigos, aliados, em vingadores, em inimigos; e em fazer com essas mesmas cidades sejam entregues à canhonada e às devastações? 
Acaso se capacitam os membros dessas Juntas que combateriam com a menor esperança de vantagem exércitos que tão facilmente podem invadir a Espanha; e que, depois de terem vencido os exércitos os mais formidáveis e os mais aguerridos da Europa, não são capazes de recuar diante de uns corpos de milícias mal armados, mal disciplinados, mal unidos, sem centro de direcção, e sem chefes famosos nas batalhas? 
Estas verdades se conhecem geralmente em quase toda a Espanha, e com especialidade em Madrid, onde já se experimentou por um modo tão vão como sensível o efeito de uma resistência desatinada, mas onde tudo continua a estar em perfeito sossego: são elas a melhor resposta que se possa dar ao susto cheio de hipocrisia que afectam ter certas pessoas, que tomando os seus votos por esperanças, adoptam cegamente as novelas e exagerações que espalha sem fundamente a malevolência, só com o desejo de vê-las realizadas. 
É uma traça vulgar o publicar que um mal existe, para lhe dar origem. Desta sorte é que uns cem soldados espanhóis, da banda de Setúbal, foram momentaneamente arrastados à deserção; mas quando se viram sós sem oficiais e sem asilo, tornaram pela maior parte por si mesmos ao seu dever, implorando que se usasse para com eles de indulgência pelo engano em que tiveram de cair, por boatos falsos.
A imensa maioria da nação espanhola conhece que o único perigo que a ameaça hoje é a anarquia, em que procuram precipitá-la os conselhos da Inglaterra e dos seus partidistas assalariados; ela porém está bem convencida de que, abandonada por uma Dinastia que nada podia fazer para sua prosperidade, só pode ter segurança e refúgio na profunda sabedoria e debaixo da invencível estrela do augusto Árbitro da Europa, o qual, como se vai a ver, lhe fala em termos que respiram menos a linguagem de um soberano, sem embargo de ter agora sobre ela os direitos os mais sagrados e os mais incontestáveis que a de um pai determinado a fazer tudo para sua glória e para sua felicidade. 


[As duas peças anunciadas no início da notícia:]



 



[Fonte: Gazeta de Lisboa, n.º 23, 7 de Junho de 1808].



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* Na verdade, um dia antes de ter saído esta notícia na Gazeta de Lisboa, Napoleão tinha outorgado a coroa espanhola ao seu irmão José Bonaparte. Por motivos óbvios, esta informação ainda não tinha chegado a Portugal na data de redacção da notícia transcrita.

As primeiras localidades portuguesas a se manifestarem contra os franceses: Chaves e Vila Pouca de Aguiar (6 e 8 de Junho de 1808, respectivamente)


Posto que a labareda ficou, como vimos, sufocada no Porto, o fogo existia e nutria-se em segredo nos corações de todos os fiéis portugueses, sempre pronto a manifestar-se, logo que as circunstâncias o permitissem. Se numas partes se amortecia, noutras ia aparecendo de novo; até que arrebentou um vulcão, de que não houveram forças que pudessem suspender a torrente. Vamos por partes. 
Todos sabem o modo singular com que os povos de Portugal (e também os de muitos outros países) celebram a festividade do Divino Espírito Santo: festividade de uma grandíssima devoção para com estes povos, mas em que o profano se tem misturado com o sagrado, como tem acontecido a muitas outras das nossas cerimónias religiosas. No Egipto seguiram-se 7 anos de fome a outros tantos de abundância, significados nas 7 vacas magras e 7 gordas com que sonhou o Faraó; entre nós seguem-se 7 semanas de abstinência que a Igreja ordena aos seus filhos, outras tantas de fartura em que estes, por sua própria devoção, se entregam a prazeres e ritos tão jocosos como extravagantes, e muitas vezes a excessos repreensíveis. Vem depois disso a festividade própria, que dura 3 dias; e é então que se dança, se toca, se canta, se come e bebe sem medida; com estes estímulos exaltam-se os espíritos, e muitas vezes se atrevem a coisas que empreenderiam no seu estado natural. Foi com efeito a festa do Espírito Santo a que produziu os primeiros sintomas de revolução em Chaves, precisamente no mesmo tempo em que Belestá a começava no Porto
Os ânimos já estavam comovidos desde a noite de 4 (véspera do dia próprio da festividade), e sucedendo na segunda oitava [6 de Junho] espalharem-se algumas notícias favoráveis sobre os acontecimentos da Espanha, os músicos dos regimentos desorganizados daquela praça, que andavam nos seus descantes, associados com várias pessoas da plebe, rompem em altos clamores de viva o nosso Príncipe. Ajuntaram-se-lhes mais indivíduos, e muitos rapazes com barretinas de papelão e paus em lugar de armas, discorreram por todas as ruas, e toda imediata continuaram os descantes, repetindo-se muitas vezes as alegres vozes: viva o nosso Príncipe, viva, viva; morra Junot e Napoleão.
Estas sementes, que germinaram numa parte do povo de Chaves, chegaram a espalhar-se pelos campos, especialmente em Vila Pouca de Aguiar; mas não granaram porque a autoridade pública não as favoreceu. Pelo contrário, deram-se algumas demonstrações de desaprovação, e escreveu-se ao Governador de armas da província [Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda] para que desculpasse estes movimentos como praticados por um povo indiscreto. Tenho este facto de uma fonte que me pareceu verídica; mas como não sou escritor de partido, exporei também as pretensões que os habitantes de Chaves sustentam sobre a primazia da restauração e os fundamentos em que as apoiam.
Corre impressa uma relação anónima dos acontecimentos de Chaves num 4.º de papel, sem título nem declaração da oficina em que se imprimiu, na qual se referem os primeiros movimentos da restauração naquela praça por um modo que, no essencial, não difere muito da minha exposição; mas acrescenta-se nela que o Governador e o Juiz de Fora não só auxiliaram aqueles mesmos movimentos dos três dias do Espírito Santo, mas consumaram a obra, fazendo colocar nas ameias do castelo a bandeira encarnada com as Armas Reais, em sinal de declaração de guerra à França, e ultimando a solene aclamação do Príncipe Regente em Chaves, donde se comunicara não só ao distrito desta vila mas até a Bragança, onde à sua imitação o General Sepúlveda praticara o mesmo no dia 11.
Numa semelhante relação do que se praticou em Vila Pouca de Aguiar, também se diz que chegando a esta em 8 de Junho a simples e passageira notícia de que na praça de Chaves se havia aclamado o nosso amado Soberano, e no dia seguinte, por carta de Pedro de Sousa Canavarro, a da prisão dos franceses no Porto, se fizera a mesma aclamação por todos os habitantes daquela vila, entre repetidos vivas, toques de caixas, repiques de sinos; seguindo-se depois uma iluminação geral, em que se distinguiram as casas do mesmo Canavarro e as de Manuel Gregório Pereira de Sampaio. Confessa porém a mesma relação que eram de desejar mais sólidos fundamentos para as esperanças e contentamento daquele povo; e que estes apareceram felizmente no momento em que o General Sepúlveda mandara chamar às armas para a expulsão do inimigo, por um edital de 11 de Junho.
Apareceu ultimamente um folheto, também anónimo, impresso em 1809 na Impressão Régia, que tem por título Memorias da villa de Chaves na sua gloriosa revolução contra a perfidia do tyrano da Europa [sic], e nele se dá toda a glória ao administrador dos provimentos de boca para o exército de Trás-os-Montes, António Vicente Ferreira de Sampaio, de acordo com o Juiz de Fora de Chaves, Domingos Álvares Lobo, atribuindo-se-lhes o terem feito na mesma praça a revolução e aclamação formal nos dias acima indicados, em resultado de conferências secretas que antecedentemente houveram entre ambos, e de um plano combinado, que se reduz aos artigos seguintes:
1.º Que no dia 6 de Junho pelas 11 horas da noite saíram com um concerto de música pelas ruas, e ele (Sampaio), como chefe da revolução, levantaria a voz: viva o Príncipe Regente, morra Napoleão e seus sequazes. Que os seus oficiais tinham armas e munições, das que se haviam comprado em Novembro de 1807, e deviam postar-se com elas encobertas na frente e retaguarda da música para a defenderem de qualquer insulto dos assalariados pelo inimigo, e jacobinos, se os houvesse. Que os feitores Anastácio, Jerónimo, e Almeida, deviam ter os obreiros prontos e armados para entrarem em acção, se necessário fosse; ocultando-se-lhes entretanto o desígnio e pretextando-lhes que se dirigiam ao depósito das lenhas, que se achavam roubadas.
2.º Que nos dias 7, 8 e 9 repetiram a mesma cena; e se o negócio tivesse acesso no povo, com ele organizariam um governo de confiança, pondo-lhe à testa o Juiz de Fora, se as autoridades superiores da província não se prestassem à causa da pátria.
3.º Que no dia 12 (véspera de Santo António) fariam cavalhadas com o devido aparato, música e fogo, arvorando-se a bandeira do Santo, em que estava o escudo das Armas Reais com a divisa: Viva o Príncipe Regente, Nosso Senhor, e no dia seguinte se conduziriam à colegiada de Santa Maria Maior, para festejarem o Santo; avisando-se desde logo (em 5 de Junho) o P. M. [Padre Mestre] Frei António da Assunção, religioso arrábido, para orar neste dia e missionar ao povo a necessidade de pegarem todo em armas a favor dos seus direitos e independência. Seguem-se outras providências para se porem prontas as famílias dos conjurados (é o nome com que o folheto os designou), papéis, livros e dinheiro da contadoria, para se pôr tudo a salvo em Espanha, se fosse necessário.
Confesso que estas formalidades e estas precauções numa terra e numa província onde não haviam inimigos, estas disposições de cavalhadas, festas, músicas e fogos de alegria feitas com com aprazamentos de dias certos, quando ainda não se tinha começado a acção, a fórmula do juramento dos associados, com muitos visos dos que se usavam no tempo dos cavaleiros andantes, que se acha a pág. 6 do mesmo folheto, uma carta do Padre Assunção a pág. 7, e outras mais circunstâncias eram bastantes para me darem uma ideia muito desfavorável da veracidade desta obra. Acresce o ter ela aparecido e desaparecido como o relâmpago, não se anunciando ao público nem se pondo em venda, e podendo apenas descobrir-se algum exemplar como a furto; o que faz presumir que se imprimiu para algum fim particular, e que pretende ocultar-se ao público para não se lhe descobrir alguma chaga. 
Como pode conceber-se que ficassem em segredo, se fossem verdadeiros, factos desta natureza, que se dizem praticados numa praça de armas que ao mesmo tempo é uma das vilas notáveis do reino, numa época em que tanto se pesquisavam os mais leves movimentos da nossa restauração? Como é possível que os seus autores não os fizessem valer, e que deles não aparecessem nem vestígios nos dois periódicos formalizados por ordem dos respectivos governos, o Leal Portuguez [sic] no Porto e a Minerva Lusitana em Coimbra, cujos redactores, dotados de grande erudição e de muita perspicácia, cuidadosamente ajuntavam todas as memórias concernentes ao princípio e progresso da revolução? O argumento negativo tem aqui muita força, muito principalmente porque com o testemunho daqueles dois periódicos concordam em dar a primazia a Bragança os muitos escritos do tempo, que podem ver-se citados na Memoria abbreviada dos serviços do General Sepulveda [sic], sem mesmo fazerem questão ou nos darem conhecimento algum daqueles pretendidos acontecimentos.
Sepúlveda passou constantemente pelo primeiro chefe da aclamação, e como tal recebeu cartas de elogios do governo do Porto e aplausos universais em toda a província de Trás-os-Montes, por onde vagou, e especialmente em Vila Real, onde a 9 de Julho lhe deram uma pomposa entrada, recitando-se na sua presença uma oração em nome da Câmara, a qual também corre impressa, em que se lhe concede esta primazia com expressões as mais claras e terminantes. A cidade de Miranda, as vilas de Ruivães, Torre de Moncorvo e outras mais terras daquelas províncias também fizeram imprimir relações dos factos que lhes respeitam, e todas citam o rompimento de Bragança como o primeiro desta feliz revolução em Trás-os-Montes, sem que nenhuma se lembrasse de Chaves*.
As Memórias de Chaves me parecem pois uma impostura semelhante ao catálogo das actas de um certo conselho conservador que se inventou em Lisboa**, cujos autores datam as suas conferências e os seus planos para a restauração do reino de um tempo em que ninguém se remexia ainda em Portugal; que porém foram desmascaradas por declarações públicas de alguns daqueles mesmos que eles incluíram numa lista dos adidos aos seus mistérios, e pela prisão de um ou dois dos próprios chefes, como suspeitos ao nosso governo.
Como historiador eu tenho coligido os factos e exposto as reflexões que determinam sobre eles a minha opinião; mudarei dela muito voluntariamente (pois estou bem longe de querer roubar a glória a quem ela possa pertencer), uma vez que se produzam fundamentos que a destruam, quais não tenho achado até o presente; podendo atestar que é este um dos pontos históricos de que a investigação me deu maior trabalho e me deixou mais convencido do pouco crédito que merece a maior parte dos escritos volantes que têm aparecido sobre a restauração, e do quanto é difícil ao historiador o alcançar com pureza a verdade dos factos, quando com estes se mistura o espírito do partido, e ele se acha na situação penosa de não poder alcançar memórias, senão por via de pessoas que têm interesse por uma ou por outra parte.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 111-123].

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Notas:


* [Nota original de Acúrsio das Neves] Vila Real na sua relação pretende para si a primazia, sem falar em Bragança nem em Chaves; o fio dos sucessos irá mostrando que também a sua pretensão é mal fundada.

** [Nota nossa] Acúrsio das Neves refere-se a um opúsculo de 24 páginas publicado pela Impressão Régia logo em 1808, com o longo título Catalogo por copia extrahido do original das sessões e actas feitas pela sociedade de portuguezes, dirigida por um conselho intitulado Conselho Conservador de Lisboa, e installada n'esta mesma cidade em 5 de fevereiro de 1808; tendo se unido os installadores em 21 de janeiro do mesmo anno para tractar da restauração da patria [sic]
Inocêncio Francisco da Silva afirma que este conselho "não passava (creio eu com bons fundamentos) de uma loja maçónica das que, como quase todas, se mostraram adversas ao jugo e usurpação francesa, e que preparava projectos que tarde ou nunca viriam a realizar-se, se as circunstâncias externas não coadjuvassem tão poderosamente os portugueses na recuperação da sua independência!" [Fonte: Innocencio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez - Tomo Quinto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, p. 70].
Luís Augusto Rebelo da Silva, por sua vez, refere que "a existência desta sociedade secreta não é uma invenção". Fundamentando-se exclusivamente no citado catálogo das actas, adianta este autor que o dito "conselho fundou-se em 5 de Fevereiro de 1808, com seis sócios que eram: G..., Mateus Augusto, José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, José Carlos de Figueiredo, António Gonçalves Pereira, André da Ponte do Quental da Câmara; José Máximo da Fonseca foi nomeado secretário. O local das reuniões decidiu-se que fosse alternadamente a casa de cada um dos adeptos. A hora das conferências às 8 da noite. 
A fórmula do juramento adoptada era esta: «Na nossa presença, oh imenso, Sempiterno, Omnipotente Deus, criador do Universo, estando em nosso acordo, sem constrangimento ou dúvida, livres e deliberados jurámos tratar de hoje em diante com todo o possível desvelo, fervor, prudência e firmeza a causa nobilíssima da religião, da pátria e do trono, aplicando para isso nossas forças, talentos, bens e vida até conseguirmos entregar este a seu dono o Príncipe Regente e àqueles o esplendor, a liberdade, a glória. Este juramento seja para sempre o fundamento da nossa honra e da nossa felicidade, que chame sobre nós a bênção divina e os aplausos da nossa posteridade; a violação dele, pelo contrário, atrairá sobre nós as maldições do céu e da terra; a vileza para nós e para os nossos descendentes.»
Na sétima sessão prestaram este juramento um pouco teatral o coronel de cavalaria Álvaro Xavier 
[184]de Póvoas e Fernando Romão da Costa Ataíde Teive. Daí  em diante cresceu todos os dias o número dos sócios e associados. Na sessão de 25.º constituiu-se o conselho conservador à pluralidade de votos e ficou composto dos seguintes deputados e adjuntos: o bispo de Malaca D. Francisco, o D. abade de Belém fr. Manuel de Mesquita, o arcediago do Funchal Manuel Joaquim de Sousa, o beneficiado Joaquim José da Costa, o marquês de Angeja D. João, o conde de Rio Maior, o visconde da Bahia, o desembargador Sebastião José de Sampaio, o brigadeiro António Marcelino da Victoria, os coronéis Lemos, Lacerda e Raposo, o tenente coronel Costa Ataíde, o major António Marcelino Soares, e todos os [de]mais sócios aprovados e admitidos. João Carlos de Saldanha Oliveira e Daun, hoje duque de Saldanha, entrou também no conselho, inscrito sob número 27. Consta da relação publicada a pág. 87 do opúsculo.
O conselho, desde 5 de Fevereiro até ao 1.º de Outubro de 1808, em que se dissolveu, celebrou quarenta e duas sessões. O número dos sócios ajuramentados subia a 183. O dos auxiliares abonados por vários deles elevava-se a 959, além do concurso de tropa e povo, com que contava para o caso de um rompimento.
Os planos de sublevação, as proclamações, os avisos ao almirante inglês sir Charles Cotton e os projectos da sociedade não corriam tão secretos como ela imaginava.
A polícia francesa suspeitava, pelo menos, se não conhecia plenamente a organização deste núcleo; porém, não julgou prudente proceder contra ele, temendo-se talvez mais de um processo ruidoso em circunstâncias criticas, do que dos tramas pouco belicosos e activos dos conspiradores. É o que se depreende de um trecho da Historia da Guerra da Península
 do general Foy [Fonte: Luiz Augusto Rebello da Silva, A casa dos fantasmas - Episodio do tempo dos francezes (Volume II), Lisboa, Typographia da Gazeta de Portugal, 1865, pp. 227-228]. 
Finalmente, veja-se ainda a este respeito a referida obra de Foy, Histoire de la guerre de la péninsule sous Napoléon - Tome IV, Paris, Baudouin Frères Éditeurs, 1827, pp. 277 e ss.


O final da (primeira) "restauração" do Porto



O Império da opinião é sem dúvida o mais poderoso, e adquire tanto mais prepotência sobre os homens quanto de ordinário eles são superficiais, faltos de ideias sólidas e de sãos princípios, dos quais possam deduzir certas e legitimas conclusões. Fosse a opinião que havia das grandes forças de Bonaparte, sem pensarem que, se as tivesse, as teria mandado para Espanha e Portugal, tanto para manter seu governo tirano como para os sustentar à custa destas Nações; fosse a ignorância do pé que a Espanha tinha tomado, ou dúvida sobre as notícias que dali vinham: seja o que for, é certo que durou apenas três dias a convenção acima determinada. A Câmara, em virtude dum ofício que Belestá deixou, para ser por ela remetido a Junot, enviou-lhe a notícia da prisão de Quesnel, não podendo deixar de o fazer quando remeteu o dito ofício; e Oliveira [Governador interino das Armas do Porto] mandou-lhe a mesma noticia, e no entanto mandou arrear as bandeiras e prender o Major Raimundo José Pinheiro pela ter arvorado no Castelo da Foz; o mesmo fez o Superintendente da Alfândega ao filho do Patrão mor pela ter arvorado na ponte, e continuou-se a governar em nome de Napoleão.

[Fonte: Frei Joaquim Soares, Compendio historico..., Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1808, p. 25].



* * *


Regressemos um pouco atrás: Na manhã do dia 7 de Junho de 1808, o General Belestá marchou para a Galiza com as suas tropas espanholas e com os franceses feitos prisioneiros no dia anterior. Entretanto, nessa mesma madrugada, como atrás vimoso Major Raimundo José Pinheiro ocupara a fortaleza de S. João da Foz do Douro, passando-a a governar interinamente, de acordo com ordens do próprio General Belestá. Ainda na manhã do mesmo dia 7, ao ser içada a bandeira portuguesa na dita fortaleza, anunciada com salvas de artilharia, as fortificações vizinhas de São Francisco Xavier do Queijo (ou Castelo do Queijo) e de Nossa Senhora das Neves (também conhecida como Forte de Leça da Palmeira ou Castelo de Matosinhos) responderam com repiques de sinos (conforme ordens que Raimundo Pinheiro dera nesse sentido).

Fortificações costeiras vizinhas da cidade do Porto
(de sul para norte):
Fortaleza de S. João da Foz do Douro
Castelo do Queijo
Forte de Leça da Palmeira


Este cenário não foi ignorado por uma embarcação inglesa que bloqueava a foz do Douro, conforme narra José Acúrsio das Neves:

"Bordejava junto à foz do Douro o brigue de guerra inglês o Eclipse, e causando expectação ao seu comandante a novidade que observava nas fortalezas, aproximou-se à terra; Raimundo fez-lhe sinal, mandou-lhe uma mensagem pelo piloto mor, e foi depois ele mesmo em pessoa dar-lhe parte dos sucessos e convidá-lo a entrar no porto. O comandante mandou logo embandeirar o brigue e dar uma salva, e despachou um comissário que desembarcou na fortaleza e foi remetido por Raimundo ao Governador das armas, Luís de Oliveira da Costa, aquele mesmo que assistira ao congresso da noite precedente, e tinha aprovado a resolução que nele se tomara. Servia interinamente este posto, por se achar vago por morte do precedente Governador o Barão de Vila Pouca, e ausência de Bernardim Freire de Andrade, que Sua Alteza Real tinha nomeado para lhe suceder, e ser ele o oficial militar de maior graduação que se achava presente. 
O comissário inglês voltou bem depressa, e a seguinte carta, que entregou a Raimundo, mostra o acolhimento que lhe fez o Governador e o apreço que deu à sua comissão. 
Carta

Falando-me o comandante do brigue inglês Eclipse, em convite que refere [que] se lhe fizera, é preciso que Vossa Mercê me diga sem demora se fez algum convite ao mesmo comandante; pois que me põe em confusão esta palavra, estando eu inteiramente ignorando semelhante acontecimento.  
Deus guarde a Vossa Mercê.
Quartel-General do Porto, 7 de Junho de 1808. 
Luís de Oliveira, Brigadeiro, Governador interino das tropas. 

A resposta a esta carta, tal qual se publicou em diferentes cópias particulares, é muito notável, até pelo pouco alinho das suas expressões, que mostram ser de um homem mais valente do que letrado. 
Resposta 


Pergunta-me Vossa Senhoria no seu ofício de 7 do corrente se fiz desta fortaleza algum convite ao comandante do brigue inglês Eclipse, e que o dito convite o pôs em confusão, e que lhe diga eu se fiz algum convite ou não; pois que Vossa Senhoria estava inteiramente alheio. Sou obrigado a dizer a Vossa Senhoria que se Vossa Senhoria está alheio no que no dia de ontem jurou o governo de Sua Alteza Real, que eu não o estou, e que com todo o mesmo governo e guarnição aclamámos o novo governo do meu adorado Príncipe, e que convidei o dito comandante para me dar todo o auxílio em nome do meu Príncipe; que lhe franqueei este porto; e que se houver quem mo dispute, eu lhe farei ver o quanto pode o nome do mesmo Real Senhor; o que posso dizer a Vossa Senhoria, e que porto está franco para os ingleses.


Fortaleza de S. João da Foz, 7 de Junho de 1808


Raimundo José Pinheiro, Major graduado e Governador




Foi o resultado ver-se o comandante do brigue na necessidade de se fazer outra vez ao largo na madrugada seguinte, e ficar a cidade obedecendo ao governo francês, ao mesmo tempo que na fortaleza de S. João da Foz se sustentava o nome do Príncipe Regente, com unânime consentimento de toda a guarnição, e se conservava arvorada a bandeira portuguesa, pela constância de Raimundo. [...] 
Na ponte da alfândega também um filho do patrão mor da ribeira arvorou a bandeira portuguesa, mas foi por este facto mandado prender. A 8, não só se conservou a bandeira na fortaleza, mas os vereadores Bernardo de Melo e Tomás da Silva Ferraz a desenrolaram sobre o mar no barco da visita da saúde*. Não houve mais novidade até 9 ao meio-dia, em que o Tenente-Coronel Manuel Ribeiro de Araújo se apresentou na fortaleza com um prego de Luís de Oliveira para Raimundo, com ordem para se abrir em presença da guarnição. Assim se praticou, e continha o prego uma nomeação do mesmo portador que a conduzira para Governador da fortaleza, feita por Oliveira, e à vista dela Raimundo se voltou para o novo provido, e lhe disse que desde já lhe entregava o governo, se era para o exercitar em nome do Príncipe Regente; que se, porém, era para seguir a voz dos franceses, podia voltar por onde viera; pois dentro daquele recinto não consentiria que se desse outro nome que o do legítimo Soberano, e não se daria um tiro contra os ingleses, porque eram os nossos fiéis aliados. 
Vendo Araújo esta deliberação, que foi adoptada e aplaudida por toda a guarnição, saiu a participar a Oliveira o acontecido; e voltando no fim da tarde, atraiu Raimundo com aquelas palavras amigáveis à casa daquele Governador, pretextando que era para se tratar de comum acordo sobre os meios de se ordenarem as coisas pelo melhor modo possível. Apenas Raimundo pôs os pés na sala de Oliveira, foi-lhe dada a voz de preso, por amotinador do povo e comprometedor da nação; e era este o negócio para que tinha sido chamado! 
Saiu Oliveira para uma varanda imediata com o mesmo Araújo e com o Tenente-Coronel Engenheiro Luís Cândido, que com ele se achavam, provavelmente para dar-lhes as ordens particulares relativas a esta prisão. Raimundo ficou na sala; e vendo-se só, e que a porta que dava passagem para a varanda tinha a chave pela parte de dentro, teve a feliz lembrança de a fechar subtilmente, e pôs-se a salvo sem ser pressentido. Conservou-se oculto por muitos dias na cidade, fazendo publicar que tinha fugido para Espanha; e para que isto se acreditasse, escreveu uma carta a Oliveira, datada de Viana a 10, e outra a sua mulher, datada de Valença a 13, estratagema que veio a servir de muito para o progressos da restauração, porque ele anunciava que ia buscar socorros, e acreditou-se que vinha à frente de um exército espanhol. 
Tal é em resumo a história da evasão de Raimundo, segundo a tenho dele mesmo. As consequências imediatas deste sucesso foram a introdução do Tenente-Coronel Araújo no governo da fortaleza de S. João da Foz, manchando-se o livro do registo das ordens a ela respectivas, com as que mandaram repor tudo no estado em que se achava durante o governo francês, e o ficar abafado por então o gérmen da restauração do reino.  
A Câmara do Porto, apenas os espanhóis deram as costas, remeteu a Junot a carta de Belestá, e outra sua, em que lhe participava os sucessos do dia 6. Oliveira fez-lhe um semelhante aviso, o Corregedor da comarca participou-o a Lagarde, e a Relação ao Ministro dos Negócios do Interior [Hermann]".


[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 90-98].


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* Embarcação que, como o nome indica, era responsável por fazer uma inspecção do estado de saúde de passageiros (antes de desembarcarem) vindos de portos estrangeiros. Esta inspecção tinha o objectivo óbvio de se evitarem propagações e contágios de doenças e epidemias. 


Excerto da Relação do que se praticou em S. João da Foz do Porto na Feliz Restauração deste Reino



Na madrugada do dia sete de Junho de 1808, tomado no Augusto Nome de Sua Alteza Real o Governo da Fortaleza de S. João da Foz do Porto pelo Major Raimundo José Pinheiro, com a aprovação dos respectivos Oficiais que fez convocar, assim do seu Estado Maior como das Companhias fixas, e proposto a estes o grande projecto do novo restabelecimento do Governo de Sua Alteza Real pelo mesmo Major, tomadas entre todos as medidas prudentes para o conseguir, à vista da posição dos espanhóis e da confiança que se devia ter nos que estavam à testa do Governo militar e civil do Porto, e que o haviam recebido na noite precedente em nome do mesmo senhor, achando dispostos para tão desejado fim os referidos Oficiais, juraram imediata e novamente nas mãos do reverendo capelão da mesma fortaleza a indefectível defesa dos reais direitos do Príncipe Regente Nosso Senhor, sem que um só hesitasse, mostrando assim que o mesmo senhor sempre havia reinado em seus corações, de que assinaram o termo do teor seguinte: 


Aos sete dias do mês de Junho de 1808, de madrugada, nesta fortaleza de S. João da Foz do Douro, onde eu, o Padre José de Barbosa Pereira, Capelão da mesma, fui chamado, com os demais membros da mesma fortaleza abaixo assinados, pelo Ilustríssimo Major Governador Raimundo José Pinheiro, e por ele foi dito que, tendo sido presos os franceses que estavam no Porto, era justo que na fortaleza se arvorasse a real bandeira e se aclamasse o Nosso Augusto e Legitimo Soberano, o Sereníssimo Senhor D. João Príncipe Regente, ao que todos unânime e prontamente respondemos que estimávamos e aprovávamos a sua proposição, que sempre estes tinham sido os nossos sentimentos, e que somente esperávamos oportunidade, pois que o Tirano era por nós detestado como inimigo da Religião, dos Soberanos e dos Direitos mais Sagrados; e sendo então por ele, [o] dito Major, aclamado o mesmo Real Senhor, a que todos respondemos com repetidos vivas e aclamações, me mandou deferir a todos os juramento dos Santos Evangelhos, e mo deferiu também a mim, debaixo do qual todos nos obrigámos a defender a Religião, os Direitos do Nosso Legítimo e Amável Soberano, e a Independência da Nação contra o Usurpador, e a promover e animar o povo, dispondo-o a tomar parte nesta importante empresa, mandando-me depois fazer – como fiz – à guarnição uma dissertação em que a exortei a cumprir inviolavelmente um tão sagrado dever, para o que me mandou fazer este termo, que assinei com ele, sobredito Major, e com os demais juramentados. 
O Padre José de Barbosa Pereira, Capelão. 
Raimundo José Pinheiro, Major Graduado e Governador. 
José António de Sousa Cardoso, Capitão. 
José Lucas do Sobral, Tenente Comandante da Guarnição de Artilharia do Regimento n.º 4 destacado na dita fortaleza. 
Francisco José de Sampaio, segundo Tenente. 
Manuel José da Silva Monteiro, Almoxarife da dita fortaleza. 
João Baptista da Pena, Sargento. 
Sebastião de Sampaio e Melo, Sargento da fortaleza.


E sendo logo por todos implorado o poderoso auxílio da Virgem Santíssima do Rosário, padroeira da fortaleza, lhe votaram em nome de Sua Alteza Real que, se ela felicitasse tão justa empresa, seria-lhe aquele dia para sempre consagrado com uma solene festividade com exposição do Santíssimo Sacramento e procissão para perpétua memória, confiando da religião e piedade de Sua Alteza Real a confirmação; em consequência do que, ao nascer do sol do mesmo dia sete, foi solenemente aclamado na mesma fortaleza o Príncipe Regente Nosso Senhor, e arvorada a sua real bandeira, que se firmou com repetidas salvas de artilharia, fogo do ar, e repiques de sinos na Igreja e Capela desta povoação, e nos Castelos do Queijo e Matosinhos, a cujas Praças bem como a Igreja e Capelas havia o dito Governador expedido a precisa ordem. 
Despregada assim a primeira vez depois da sua supressão, a real bandeira portuguesa, e excitada com a sua desejada vista a saudade sufocada nos aflitos corações dos portugueses fiéis, foi o mesmo Governador a bordo do brigue Eclipse de Sua Majestade Britânica noticiar-lhe o referido, e pedir em nome de Sua Alteza Real o auxílio que devia esperar da Grã-Bretanha, sempre leal e antiga aliada deste Reino, e declarar-lhe franco e aberto este porto; ao que correspondeu, embandeirando-se, salvando e mandando à terra em companhia do dito Major um Oficial seu, que foi recebido por toda a guarnição e povo inumerável que ali havia concorrido com os mais vivos transportes de alegria. 
Dispostos por efeito deste facto os ânimos do povo, e desterrado o terror pânico, que até lhes tornava mudas suas línguas, houve o Governo do Porto (talvez por temor ou respeito a alguns Ministros franceses que ali tinham ficado) de hesitar sobre o partido que devia tomar; e, contra o que se esperava, chegou a mandar ordens contrárias à mesma fortaleza, que contudo não se executaram [...].

[Fonte: Relação do que se praticou em S. João da Foz do Porto na Feliz Restauração deste Reino, in Arquivo Histórico Militar, 1.ª div., sex. 14, cx. 182, doc. 83, fls. 17-19; o auto da proclamação (acima em itálico) foi publicado igualmente por José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 86-88; e por Manuel Mendes, no seu artigo “Guimarães e a Aclamação de D. João VI num códice inédito do Arquivo Histórico Militar”, in Revista de Guimarães, n.º 69 (1-2), Janeiro-Junho de 1959, pp. 19-66, pp. 31-32.].