sexta-feira, 10 de junho de 2011

Relação da marcha do Regimento de Infantaria de Múrcia em 1808, de Portugal à Espanha


Na relação da gloriosa marcha do Regimento de Múrcia de Portugal à Espanha em 1808 há de se notar, como circunstância muito interessante, a falta de concorrência dos chefes naturais do Corpo, e ainda talvez a falta de disposições, quando não de assistência, do General espanhol a cuja Divisão pertencia. Devo portanto à claridade e verdade dos factos, ao mérito do Regimento, à justiça, e ainda ao decoro do dito General, uma explicação da posição política e militar em que nos achávamos, que faça ver o lugar que ocupou cada um, e sirva de introdução ao assunto deste papel.
Quando em 1807 o Exército espanhol entrou em Portugal auxiliando o francês sob o comando do General Junot, foi atribuído o Regimento de Múrcia (1) à Divisão do General Carrafa, mas as circunstâncias ou os acidentes a que estão sujeitas as operações militares fizeram-no agir por si só, a grande distância do seu General. Entrou pelo Alentejo, passou por Campo Maior, ocupou Elvas, dispôs a sua guarnição em união com as tropas portuguesas, e quando o desgosto destas e o receio dos Governadores tornaram crítica a sua posição, soube fazer respeitar as armas de Sua Majestade, mantendo-se com carácter e com medidas que se impuseram, não obstante a praça [de Elvas] encerrar cinco Regimentos de Infantaria e um de Cavalaria portugueses. Nos primeiros dias de Fevereiro de 1808 foi reforçado com o primeiro Batalhão da coluna de Granadeiros da província de Castela-a-Nova, e ambos os Corpos permaneceram na praça até que, no dia 13 de Março, relevados por um Regimento francês, empreenderam a marcha por Batalhões, dirigindo-se para as imediações de Lisboa.
A Divisão Carrafa estava desde meados de Janeiro sob as ordens de Junot, segundo as ordens que tínhamos recebido da nossa Corte, e portanto o General francês dispunha os nossos movimentos segundo o seu arbítrio, devendo notar-se que, tanto nesta parte como nas demais do seu mando sobre as tropas espanholas, costumava dirigir-se directamente aos Coronéis, prescindindo do conduto do General Carrafa sempre que assim o entendia. Deste modo foi comunicada a ordem de marcha por um Ajudante General francês. Assim procedemos, sendo que o primeiro Batalhão entrou em Setúbal a 22 de Março, onde ficou sujeito à Divisão francesa do General Kellermann, que mandava naquela comarca; o 2.º Batalhão marchou no dia 25 para Sesimbra, cujo porto guarneceu em união com as tropas do Regimento Ligeiro de Valência [pertencente à Divisão de Solano], que estava dividido entre esse ponto e Alcácer do Sal.
O General Carrafa estava em Lisboa, onde se conformara com as instruções que teria do nosso Governo, representando um papel bem vergonhoso, sendo insignificante ou fictício o seu comando, pois como nós estávamos dependentes de Kellermann, regulando este o nosso serviço, revistando-nos os seus comissários, recebendo as nossas rações dos armazéns franceses e até os nossos haveres pelas suas mãos, ditando enfim Junot as suas ordens (ou através dos Generais francesespara os [nossos] Corpos, pouco ou nada restava a fazer ao General Carrafa, que com a sua Divisão disseminada em diferente pontos do Reino, tendo os seus Corpos interpolados com os franceses e longes de sua pessoa, não era fácil que concebesse nem executasse grandes pensamentos; não o conheço, nem tive jamais a menor relação com S.ª Ex.ª, nem menos penso em julgar ou qualificar a sua conduta; digo isto só em obséquio da verdade e pelo que influi como insinuei ao princípio no mérito da operação do meu Regimento.
Em Setúbal havia connosco uma guarnição francesa, cuja força não posso fixar, embora possa assegurar que era o triplo ou o quádruplo da do meu Regimento e que constava de tropas de todas as armas. O General Kellermann passou em pouco tempo para Elvas e Grendeux [sic] ficou chefiando-nos em Setúbal.
A operação de desarmar o país, a perseguição dos desertores e os destacamentos em diferentes pontos dividiram a força do meu Regimento, fazendo-a em todas as partes pouco capaz de tentar por si só coisa alguma de importância.
Em tal situação desde meados de Abril, começou a faltar-nos totalmente a correspondência com a pátria, e esta falta, que produzia a carência de notícias sobre o seu estado, era mais que suficiente para pôr os nossos espíritos em agitação, mas não para nos decidirmos por nós próprios a tomar um partido; não obstante, crescia o desgosto com que todas as classes serviam às ordens dos Generais franceses. Através de vias nada seguras, chegavam boatos que anunciavam vagamente uma revolução na Espanha, mas as contradições e obscuridades que os envolviam e o facto de se ignorar sempre o sujeito que os tentava propagar, mantinha forçosamente a nossa incerteza e constituía-nos num estado verdadeiramente lastimoso.
A conduta do [nosso] Coronel [D. Jorge Galván], abertamente afeiçoado às ideias dos franceses, apresentava embaraço aos que tinham diferentes pensamentos e mostravam o seu patriotismo, sendo ao mesmo tempo odiosa a todos os seus subordinados. Os oficiais que então mais intimamente tratavam com ele asseguram que inicialmente esteve decidido a conduzir o seu Regimento à Espanha, e que só depois variou e se decidiu pelo partido francês. Nada me consta acerca disto; sei somente que D. Vicente de Vargas, Subtenente de Granadeiros, encontrava-se então em Lisboa, destacado pelo Coronel, com o pretexto de assuntos relacionados com o Regimento, e, segundo se dizia, com o objectivo de lhe comunicar notícias sobre as ideias e operações dos franceses, o que parece de acordo com aquela opinião; mas de outra parte consta por notoriedade a sua adesão aos franceses. Ouvi-o várias vezes expressar-se nos termos mais escandalosos, no que se refere à nossa situação; que nos importa (dizia um dia) que em Espanha reine a Casa de Borbón ou a de Napoleão; desde que se atenda ao mérito e que sejamos pagos, o demais é igual. Sei igualmente que procurava por todos os meios possíveis granjear o apreço dos franceses, e, finalmente, que poucos dias antes da nossa marcha para Espanha, escreveu e pôs na ordem do Corpo uma proclamação em que recordava ao soldado as necessidades que tinha sofrido em Ceuta e no campo de Gibraltar, comparando-as com a abundância em que então se estava, e concluía proclamando Napoleão Bonaparte como restaurador da Espanha.
Dizia-se ademais que naqueles dias se tinha apresentado na sua casa um homem em traje de paisano espanhol, e depois duma larga conferência sozinho com ele, ao sair de sua casa ordenou aos guardas para que o prendessem e o conduzissem à prisão, e que este paisano, no caminho até à prisão, pôde dizer ao Cabo dos Granadeiros que era um sujeito de qualidade e que tinha entrado na casa do Coronel para lhe propor a sua vinda para a Espanha: este incidente, uma vez divulgado, causou uma agitação muito viva na tropa, mas como só constava pelo dito do Cabo, ficou duvidoso por então o facto que desgraçadamente foi bastante certo.
Em tal estado, avisou o General francês no dia 6 de Junho que a 9 chegaria a Setúbal o 2.º Batalhão, como se efectuou, para marchar a Sesimbra, procedente de Alcácer do Sal, onde se achava desde o mês anterior. Reunidos os dois Batalhões, tornou-se geral o desgosto e começava a correr a opinião de que já era necessário tomar um partido. Naquela noite recebeu-se uma ordem para que todo o Corpo marchasse no dia seguinte para Lisboa, embarcando em Aldeia-Galega [actual Montijo] para atravessar a embocadura do Tejo.
As pomposas expressões da ordem (que dizia que nos destinavam a ter a honra de servir perto do General em Chefe [Junot]) e as persuasões do Coronel (que procurava que víssemos neste facto a nossa felicidade) não puderam apagar a suspeita que concebeu todo o Regimento de que talvez nos quisessem encerrar naquela praça [de Lisboa] e no meio do grosso das tropas francesas com a intenção de nos desarmar. Esta ideia era reforçada pela circunstância de que numa revista de armas passada poucos dias antes, [os franceses] tinham recolhido as munições à tropa [espanhola], se bem que esta teve a precaução de ocultar alguns cartuchos. A desconfiança, pois, era fundada, e o consequente desgosto e o desejo de nos evadirmos e passarmos rapidamente à Espanha, era geral; embora seja forçoso perceber a diferença com que as diferentes classes pensavam entregar-se a um partido violento. Os soldados, com o patriotismo à prova, com valor decidido, com receio fundado, e sem conhecimentos para perceber os perigos da sua posição ou o incerto da sua sorte ao chegar à Espanha, já não pensaram noutra coisa senão em efectuá-lo. Os oficiais, com o mesmo desejo, ademais dos estímulos do seu pundonor e da sua ambição de glória, mas com o convencimento das dificuldades extraordinárias que a empresa apresentava, sem aviso algum dos seus Generais, contrariados os seus sentimentos pelos dos seus chefes (que pareciam que deviam ter notícias mais certas), e, sobretudo, ignorando, pela falta absoluta de correspondência, qual era a opinião geral da sua pátria, que medidas tinha tomado e que governo a regia, tinham somente uma remota esperança de acertar numa operação tão difícil; e queriam executá-la com uma combinação prudente que, pelo menos, lhes ajudasse a salvar a sua tropa, e que se movesse de acordo com algum dado certo, que com ansiedade buscavam.
As suas reuniões secretas eram de alguns dias àquela parte muito frequentes, e embora se reunissem as ideias e as notícias de todos, tudo junto não produzia outra coisa senão o convencimento de que se achavam em situação bem crítica. Não repelíamos, pois, as ideias dos soldados, mas procurávamos inspirar-lhes confiança nos seus oficiais, e evitar, se fosse possível, que executassem em desordem o que só podia conseguir-se dum modo diferente. Este era o verdadeiro estado dos nossos espíritos.
No dia 10 pela manhã o Regimento formou-se para marchar para Lisboa. A tropa deu sinais claros da sua disposição com expressões acaloradas que se viam nas filas. O Coronel apresentou-se, e recebidas as bandeiras com demonstrações de particular alegria, mandou marchar.
A uma légua muito curta de Setúbal está situada, sobre uma elevação, a povoação de Palmela, que devíamos atravessar; ao pé da encosta, à direita parte um caminho que conduz a Espanha; ao chegar a este ponto, ouviram-se gritos que diziam À Espanha. O Coronel quis persuadir a tropa, mas dispararam-lhe alguns tiros que o fizeram correr a esconder-se em Palmela. Os oficiais esforçaram-se para conter a desordem e restabelecer a disciplina, mas uns trezentos homens separaram-se e seguiram o seu propósito da maneira que explicarei mais adiante.
Naqueles momentos de confusão regressaram a Setúbal as equipagens e os cofres; na mesma cidade tinham ficado vários oficiais e outros indivíduos por estarem enfermos e comissionados, entre os quais se contava o Sargento mor [D. Juan Dabán] (2).
Conseguida trabalhosamente a reunião [das tropas], dirigimo-nos a Palmela, onde efectivamente estava o Coronel numa cela do convento que se encontra no castelo; convencemos-lhe a abrir-nos a porta, e assim lhe demos parte de tudo, e de que tinha ali o grosso dos seus Batalhões dispostos a obedecer-lhe em tudo menos em marchar para Lisboa; assim se lhe dirigiram também os soldados, os quais foi ver, a rogo deles. Se este chefe se tivesse aproveitado da boa disposição do seu Regimento, quão facilmente teria adquirido uma glória que não merecia! Mas o miserável estava já cego à luz da razão e surdo ao clamor da pátria que só ele tinha podido ouvir com clareza, pois lhe teriam chegado os avisos que sufocou.
Na revista da tarde falou outra vez aos soldados e estes lhe fizeram igual protesto. Deu parte de tudo ao General francês, e esperava a sua resolução, impossibilitado já de marchar a Lisboa.
Encontrávamo-nos quase todos os oficiais no seu alojamento no convento às nove e meia ou às dez da noite, tendo-se apresentado D. Vicente de Vargas, que vinha de Lisboa; falou com ele aparte durante muito tempo e depois se despediu; alguns de nós o seguimos, desejosos de saber o motivo da sua vinda e o demais que nos podia interessar, mas por então só se explicou misteriosamente.
O caso era que, segundo soubemos depois, D. Tibúrcio Carcelen, Coronel da coluna de Granadeiros provinciais, entregara em Lisboa a D. Vicente de Vargas uma proclamação ou carta manuscrita pelo General Galluzo dirigida aos Coronéis dos Regimentos [espanhóis] que se encontravam em Portugal, em que muito concisamente manifestava o estado da nação, convidando-nos a acudir à sua defesa, prevenindo que se evitassem no caminho encontros com o inimigo e oferecendo um grau aos oficiais e um escudo à tropa; Carcelen, ao dar este papel a Vargas, parece que lhe advertiu para que não se fiasse no Coronel, porque este estava decidido pelos inimigos. Apesar disto, Vargas, que pela sua ausência ignorava as provas que tinha dado aquele chefe em favor daquela opinião, pensou que a situação se agravaria demasiado se em tal ocasião não examinasse por si mesmo a sua vontade. Confiou assim ao Coronel quanto se tinha falado na dita conferência, e este foi bastante pérfido enganando-o, oferecendo-lhe que marchasse para Espanha à cabeça do seu Regimento, encarregando-lhe sigilo e convocando-o para o amanhecer. A esta hora, alguns oficiais dirigiram-se ao convento com Vargas, cuja surpresa foi igual à sua indignação, ouvindo da boca dos religiosos que o Coronel se tinha escapado para Setúbal. Compreendendo então todo o risco da nossa sorte, [Vargas] fez com que se tocasse às ordens, e reunindo todos os oficiais no alojamento do Ajudante mor D. Pedro Carrión, revelou o segredo ao ler a proclamação do General Galluzo, referindo-nos sincera e verdadeiramente tudo quanto tinha falado com o Coronel, e manifestando a sua ideia de marchar seguidamente para Espanha. Ao escutá-lo, todos nos esquecemos de quantos riscos se nos apresentavam e decidimos unanimemente a marcha com a maior alegria. A circunstância de nos acharmos abandonados pelos nossos chefes, a falta de equipagens, fundos, subsistências e munições, a proximidade das tropas inimigas em Setúbal e em número bastante superior, a facilidade de nos acharmos envolvidos pelas [tropas francesas] de outros pontos, a ignorância da topografia do país e a diminuição da nossa força com o acidente do dia anterior eram factos que não se apresentavam à imaginação daqueles oficiais senão como outros tantos fundamentos da glória com que se iam cobrir quando tantos inconvenientes fizessem frente à sua decisão valorosa, às suas espadas e às baionetas dos seus soldados, sendo estes todos os recursos que estavam à nossa disposição. Formaram-se imediatamente os batalhões, recebeu-se a bandeira coronela (3), e instruiu-se a tropa da nossa decisão e do motivo em que se fundava, sendo que Vargas leu-lhes a proclamação [do General Galluzo] sem ocultar o generoso esforço que iam executar numa operação espinhosa. Pintar a alegria que então manifestaram os soldados, a ferocidade e o despeito com que os seus semblantes guerreiros pareciam que desafiavam todos os perigos, e as lágrimas de ternura que um instante depois derramaram ao se mandar repetir o juramento de bandeira, seria um objecto digno, solene e expressivo para a pena de um Ercilla, mas grande demais para que a minha o tente.
Deu-se a reconhecer como comandante provisório o Capitão graduado de Tenente Coronel D. José Bonicelli, o mais antigo dos presentes, mas não teve verdadeiramente as funções de tal no relativo ao movimento empreendido, porque nem o estado dos espíritos, nem o que cada um arriscava em tal empresa tão extraordinária, nem a confiança que a tropa já havia depositado em Vargas permitia que se seguissem os trâmites de ordenança. Reunidos todos ou parte dos oficiais nas ocorrências difíceis, expunha-se o caso e deliberava-se sempre seguindo a voz de Vargas e a opinião de algum outro que merecia particular consideração aos seus companheiros.
Seguimos as quatro primeiras léguas até Águas de Moura pelo caminho real, o único que conhecíamos; mas como podia ser-nos demasiado funesto, fizemos com que um indivíduo experimentado (4) que encontrámos acidentalmente nos conduzisse por outro que não fosse uma via militar. Assim se verificou, por um território bastante acidentado e difícil, mas foi tão acertado este novo juízo que pouco tempo depois de deixarmos as imediações da dita povoação, onde se deu um descanso de duas horas e um pequeno refresco à tropa, entrou em Galvan [sico nosso Coronel com as tropas francesas de todas as armas em nossa perseguição. As precauções tomadas para ocultar a nossa direcção evitaram o encontro. A estação queria aumentar a nossa glória, pois o calor daqueles dias era tão excessivo que se sufocaram por seu efeito vários indivíduos; e nas noites, sobretudo na primeira, sofremos ao descoberto nos montes por onde transitávamos tempestades espantosas de três e mais horas de duração, e chuvas das mais copiosas, sem capotes nem outro resguardo senão o uniforme; o calçado ficou imediatamente destruído e os nossos soldados, descalços, regavam com o sangue dos seus pés o caminho que os conduzia à sua pátria. Marchava-se dia e noite, sem outro repouso além de duas horas ao meio-dia e duas ou três pela noite, desde que obscurecia até que, dissipada a tempestade, queria a lua mostrar-nos o caminho, o que nem sempre conseguíamos, e a luz dos relâmpagos costumava fazer-nos ver a nossa vanguarda desde os demais pontos da coluna. Como não entrávamos em povoações nem as avistámos, toda a subsistência consistia no pouco pão que se encontrava nas quintas que se achavam a certa distância. Recolhia-se este e distribuía-se com ordem; e penso que em nenhum dia se pôde reunir bastante para que se desse mais duma quarta parte dum pão por soldado. Faltavam verdadeiramente as forças físicas, mas susteve-nos o equilíbrio o que sobrava do espírito e bom desejo, e por isto não foi impossível a marcha (5). Esta executava-se, não obstante, sob todas as regras e precauções hábeis. Algumas partidas de tropas que iam descobrindo o caminho em todas direcções asseguravam-nos e impunham tanto quanto se passava na campanha; quando fazíamos alto elegia-se a posição, estabeleciam-se guardas avançadas, dava-se o santo (6) e, enquanto a tropa descansava, os oficiais rondavam e vigiavam continuamente.
Era grande o risco que nos ameaçava de sermos alcançados pela coluna francesa que saiu de Setúbal em nossa busca; o Regimento, evitando tantos perigos, apesar do seu estado, não parecia no entanto ousado. Na segunda noite da viagem chegámos, à hora de descansar, a um moinho que distava só meia légua do ponto onde se achavam dispostas forças francesas procedentes de Elvas(7), que tinham saído para deter-nos. Soubémo-lo antecipadamente, e assim fizemos alto com as precauções correspondentes e permanecemos desde as nove às doze da noite para não alterar o nosso método, decididos a lutar se nos encontravam. No terceiro dia, pela tarde, passámos o Guadiana a vau, próximo de Serpa, com água até aos ombros, em rigorosa marcha de flanco: assim que se terminou esta operação, soubemos que uns quinhentos ou seiscentos franceses deviam passar por parte do próprio caminho por onde nós íamos. Ninguém pensou em livrar-se do encontro; pelo contrário, fizemo-nos conduzir ao caminho, e emboscados sobre ele, esperámos durante mais de duas horas para atacar os inimigos na sua marcha; mas continuámos a nossa, passado aquele tempo, porque segundo novas notícias, os franceses já tinham efectuado o seu trânsito por ali quando nós nos estabelecemos. Por fim, no dia 14 de Junho, quarto dia de trabalhos, sofrimentos e riscos, chegámos a alcançar a vista sobre a nossa Espanha. Ao pisar o limite dos dois Reinos, o Regimento fez a formação de batalha e saudou a sua pátria com três salvas. Entrámos nela por Paymogo, no condado de Niebla (8); demos parte à Junta de Sevilha, que nos mandou marchar à capital, e seguidamente ao exército do General Castaños, tendo o gosto de concorrer à campanha de Baylen e depois dela conduzir os prisioneiros aos camaradas dos portos de Andaluzia, que um mês antes suponham a nossa escravidão de um modo cobarde e falso, e não com o valor e a sobranceria com que os vencemos em Baylen.
Disse antes que trezentos homens se haviam separado na encosta de Palmela no dia dez pela manhã; estes encerraram no meio deles o Tenente Coronel D. António Cornide, que se esforçava em vão para reuni-los ao Corpo; rogaram-lhe que não os deixasse. O General francês saiu de Setúbal com alguns cavalos, falou-lhes de longe oferecendo-lhes perdão e persuadindo-os para que fossem com ele; mas foi afugentado por alguns tiros com que responderam à sua demanda. O Tenente Coronel [espanhol] conseguiu evadir-se e, em vez de ir buscar o seu Regimento, dirigiu-se a Setúbal com o General [francês]. Estes [trezentos] soldados não levaram consigo nenhum oficial nem Sargento, porque um que no seu tumulto atropelaram regressou depois a Palmela. Abriram uma mala de um capitão graduado de Tenente Coronel e, tirando o seu casaco, autorizaram com ele um Cabo cujo nome ignoro, e nomearam-no Comandante. O seu comando durou muito pouco porque, dois dias depois, não estando satisfeitos da sua legalidade e encontrando sobre a marcha o Cabo Tomás Garcia, que regressava da Andaluzia de uma comissão, transmitiram a este a autoridade e o casaco que despojaram ao outro. A sua marcha foi mais cómoda do que a nossa, não só porque levavam um dia de vantagem, mas também porque recaindo a atenção dos inimigos sobre o Regimento, como era natural, ficavam os que se separaram livres de ser molestados. Entraram por Santa Bárbara [de Casa], dirigiram-se a Ayamonte e, dali embarcados, passaram a Sevilha; com sinais de que tinham relaxado a sua disciplina, apresentaram-se ao Governo, ao qual exigiram diferentes mercês. Sua Majestade (9) mandou-os marchar para o exército, conservando por então o comando a Tomás Garcia, a quem se conferiu depois o emprego de Capitão; foi este corpo que seguidamente formou o Batalhão ligeiro de atiradores de Espanha, que tornou à disciplina sob o mando do seu Comandante D. Francisco Copons y Navia, e, em consequência, foi exemplo de valor e entusiasmo na campanha de Baylen e nas seguintes, nas quais se bateu valorosamente, até que, na organização dada ao exército do centro depois da acção de Veles, no Moral de Calatrava, no primeiro de Março de 1809, foi refundido no Regimento de Múrcia, do qual procedia.
Esta reunião não se verificou antes porque nem os separados a queriam, nem muito menos o Regimento, e provisoriamente foi muito política a medida de nos conservarmos independentes.
Parece que do que ficou dito se infere claramente, em primeiro lugar, o aceso amor à pátria de todo o Regimento, que contraiu um serviço muito assinalado, no qual os seus oficiais acreditaram o carácter e o espírito capazes de competir com os que cimentaram a fama dos nossos antigos terços nos dias das suas maiores glórias; em segundo lugar, que a falta destas qualidades nos chefes naturais e o seu infame procedimento, em vez de tornar mais gloriosa a empresa, ocasionou os males da separação de trezentos homens, a perda de fundos e os efeitos que nos vimos necessitados a deixar para trás.
Poderia estender-me muito mais, detalhando tudo quanto quisesse sobre este facto, mas creio que disse o bastante para que se forme um conceito justo dele, restando-me só acrescentar que no escrito não há circunstância alguma essencial que não me conste como testemunha presencial.
O escudo oferecido foi imediatamente confirmado pela Junta de Sevilha, mas não o grau de General oferecido (10); e se é verdade que depois o obtiveram os que particularmente o solicitaram, não deixa de ser menos verdade que alguns não deram este passo e estão contentes com a satisfação de ter executado uma acção digníssima, da qual não receberam mais alguma recompensa senão a glória de que ninguém pode defraudar-lhes, e a cruz que Sua Majestade se dignou conceder por ela.

Madrid, 12 de Julho de 1815

Francisco de Paula Figueras


[Fonte: Francisco de Paula Figueras, "Memoria de la marcha del Regimiento de Infantería de Murcia, en 1808, desde Portugal a España", in Archivo Histórico Nacional de España, cota: ES.28079.AHN/5.1.145.4.2//DIVERSOS-COLECCIONES,91,N.7].


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O autor deste manuscrito, D. Francisco de Paula Figueras y Caminals Grau de Suñer y Felip (1786-1858), pertencente na época narrada ao Regimento de Múrcia, foi posteriormente nomeado, entre outros cargos e títulos, 1.º Marqués de la Constancia, Tenente-General dos Reais Exércitos, Ministro da Guerra, Capitão General da Andaluzia e da ilha de Cuba, Senador do Reino de Espanha.



1 [Nota do Autor] O 1.º e o 2.º Batalhão, porque o 3.º tinha ficado no campo de Gibraltar.

2 [Nota do Autor] Pela tarde, incorporou-se em Palmela, mas voltou a marchar pela noite para Setúbal, segundo disposição, ao que parece, do Coronel.

3 [Nota nossa] A vandera coronela (conforme o texto original) era uma bandeira que ostentava o estandarte real espanhol, normalmente encimado por uma coroa (daí o seu nome). Era exclusivamente portada pelo primeiro batalhão de cada Regimento do exército espanhol.

[Nota do Autor] Era um contrabandista espanhol.

5 [Nota do AutorParece justo observar que se tinham deixado para trás as mochilas e cartucheiros por disposição dos oficiais, para fazer menos sensível o calor aos soldados que, como se disse, tinham bem poucos cartuchos para guardar. Quando na tempestade da primeira noite tudo devia arrojá-los, deixaram que se desfizesse com a água o pouco pão que tinham recebido em Águas de Moura (e que tinham conservado porque não esperavam reposições) e reservaram no seio os seus cartuchos; com a presença da sua fome, calcule-se o seu mérito!

6 [Nota nossa] “dar el santo”, expressão castelhana que significa: Assinalar o chefe militar o nome de um santo para que sirva de senha às guardas e postos das praças ou exércitos durante a noite

7 [Nota do AutorA própria praça distava só uma légua a nossa posição e continha 7.000 franceses. 
[Nota nossa: Parece-nos muito duvidoso que as tropas espanholas estivessem a apenas uma légua (cerca de cinco quilómetros e meio) da praça de Elvas [Yelves, no original castelhano] ao fim de dois dias de viagem (e na tarde seguinte perto de Serpa), sendo possível que este dado resulte não tanto do exagero mas mais da ignorância da topografia portuguesa por parte do autor. De facto, ainda que não seja muito claro o percurso que o Regimento de Múrcia seguiu, as poucas povoações referidas no texto permitem supor que os espanhóis teriam marchado de Palmela em direcção a Serpa mais ou menos em diagonal (ou seja, seguindo ao largo do antigo caminho que unia Lisboa a Sevilha), pelo que teriam passado a cerca de uma centena de quilómetros de Elvas].

8 [Nota do AutorNo estado mais lastimoso, pois somente conservávamos o espírito, os fusis e a ordem.

9 [Nota nossa] No original aparecem as iniciais S.M., mas dever-se-á entender que foi a Junta de Governo de Sevilha que deu a referida ordem, em nome de Sua Majestade D. Fernando VII (que se encontrava retirado na França, juntamente com o resto da família real).

10 [Nota do AutorA Junta de Sevilha não se achou obrigada a dar este grau, por ser a de Extremadura a que o tinha oferecido, e assim não o executou, ainda que nos cobriu de elogios e aprovações. 


Carta de Lagarde ao Juíz de Fora de Chaves (10 de Junho de 1808)


Lisboa, 10 de Junho de 1808


Provavelmente estará Vossa Mercê já persuadido, ou não tardará a está-lo, do sucesso acontecido da sublevação que se manifestou por meio das tropas espanholas distribuídas no Porto e Viana, antes de evacuar estas cidades para retirar-se para o seu país.
Vossa Mercê nada me diz sobre se este acontecimento está já divulgado nessa cidade. Estranhou-se tal procedimento naqueles homens que faltaram aos seus deveres e aos que o direito das gentes tem por mais sagrados; chegando ao ponto de se apoderar do Porto e de alguns funcionários franceses que foram aprisionados e conduzidos para a Galiza.
Não considero necessário dizer a Vossa Mercê que abusando assim da generosidade e legalidade com que se lhes tinha confiado como aliados, a segurança de algumas províncias, estas tropas e sobretudo os seus chefes têm a maior responsabilidade em provocar uma activa vingança, da qual não se verão livres pela sua fuga precipitada deste atentado político tão grave como inútil.
Mas sem insistir sobre as medidas tomadas para castigar eficazmente antes de pouco tempo semelhante atentado, pois que o sr. Marechal Lannes entra em Espanha com um reforço de 60.000 franceses, devo fazer conhecer a Vossa Mercê o que as circunstâncias actuais lhe ordenam, se Vossa Mercê quiser obter a benevolência do Governo actual e que esta lhe conduza à do Rei que Sua Majestade promete a este país.
Sua Excelência o Sr. Duque de Abrantes sabe com a mais viva satisfação que nos lugares onde se incendiou esta sublevação de um um curto número de soldados espanhóis, gozou o resto da tranquilidade, e que nenhum português tomou parte nestes excessos, porque todos viram que o delírio agita momentaneamente algumas cabeças, nada tem de comum com a causa deste país, a não ser que queiram atropelar com os seus próprios pés os seus amáveis interesses; Portugal por si mesmo não concorrerá a ser uma província de Espanha.
É a esta verdade que Vossa Mercê deve unir-se e aconselhar os seus concidadãos a que se unam também; a fim de pô-los de acordo contra o perigo que correriam de alguma tentativa de rebelião que os arrancasse do repouso.
A que fim não chegariam aqueles que se deixassem seduzir por insinuações? Admitamos por um momento a mais absurda e mais duvidosa hipótese: Lutando a Espanha algum tempo com vantagem contra a França e suas armas, que ganharia Portugal com isto? Voltar a sofrer o jugo espanhol que antigamente lhe foi tão pesado.
Qual será o homem sensato que possa desconhecer a posição da Europa, os exemplos passados e o imenso poder do Imperador Napoleão, para imaginar que a Espanha toda inteira hoje sem outro Rei que ela mesma, sem outro chefe nem outro centro de autoridade, chegar a levantar-se sem ficar impune por muito tempo? A Espanha, que tantas vezes foi vencida pelos franceses, tornar-se-ia agora mais forte que o resto de toda a Europa submetida às armas e ao talento do maior dos Monarcas?
Quem pensa assim incorre numa completa loucura. Sua Excelência o Duque de Abrantes está muito longe de culpar algumas classes de indivíduos em Portugal, e muito menos a nenhum empregado público, e o próprio encarrega-me que comunique a Vossa Mercê particularmente que conta nesta ocasião sobretudo com o seu zelo, para fazer continuar a profunda tranquilidade que nós gozamos, e para prevenir com maiores observações e vigilância que de qualquer desordem ou desassossego se me instrua de correio em correio com a maior exactidão e escrúpulo como de qualquer coisa que possa merecer a atenção do Governo.
Nestas circunstâncias, toda a negligência que Vossa Mercê cometa na sua correspondência, tornar-lhe-á suspeito à consideração de Sua Excelência, e por consequinte, culpável pela mais leve omissão que padeça em cumprir os seus deveres.
Informe-me Vossa Mercê não somente deste acontecimento, mas também das ocorrências de Espanha; e fará Vossa Mercê ver que qualquer sinal ou qualquer invocação relativa à Casa de Bragança desterrada no Brasil é actualmente tão criminosa como impossível que volte a Portugal uma família que para sempre cessou aqui de reinar, pois que o Grande Napoleão assim o prescreve e determina.
Tenho a honra de saudar Vossa Mercê.

P. Lagarde

[Fonte: Archivo Histórico Nacional de España, "Estados de Fuerza de las tropas españolas en Portugal. Documentación relativa a los ejercitos de la provincia de Tras-os Montes, así como a subsistencias y pasaportes de ciudadanos", cota: ES.28079.AHN/5.1.145.4.1.1.57.3//DIVERSOS-COLECCIONES,87,N.27].


Notícias publicadas na Gazeta de Lisboa (10 de Junho de 1808)




Lisboa, 10 de Junho


Anteontem à noite houve no Teatro de S. Carlos um festim magnífico, cujas particularidades daremos na folha seguinte*

Por cartas de França, dignas de crédito, consta que um novo exército de 60.000 homens, às ordens de Sua Excelência o Marechal Lannes, está a ponto de entrar em Espanha, a fim de defender as costas, se, por acaso, os ingleses tivessem a ideia de procurar fazer aí alguma expedição, à maneira da de Tolon; isto é, de se apresentar naquelas costas para lançar fogo a tudo, e pôr-se consecutivamente em fugida, entregando à cólera do vencedor aqueles que se deixarem cair no criminoso engano de ajudá-los. 
Esta notícia poderá muito bem aplacar a petulência de certos agentes ingleses, que, em algumas partes da Espanha, querem absolutamente, debaixo do título de Juntas, introduzir a mania dos Clubs (associações populares) com que também procuraram arruinar a França em meio da sua revolução. 
Ninguém sabe melhor que os ingleses o quão temível será para eles uma união verdadeiramente íntima entre a França e a Espanha, tal qual não pode deixar de o ser, quando a mesma família houver de ocupar ambos os tronos; e quando, segundo a sua promessa, o Imperador Napoleão tiver confiado o ceptro espanhol a outro ele mesmo. Por isso é que a Inglaterra de nada se descuida para armar os espanhóis uns contra os outros, procurando impedir que se reúnam debaixo da invencível estrela do Grande Napoleão. Os ingleses porém só poderão conseguir fazer algumas vítimas; sobejo bom senso têm os espanhóis para deixar de ver o laço que lhes armam os seus inimigos; e sobejas luzes para se tornarem, contra si mesmos, os instrumentos de uma nação que tem ocasionado a perda de todas aquelas que têm seguido os seus pérfidos conselhos; porque, assim como muitas vezes o têm proclamado os oradores do seu Parlamento, o Gabinete de S. James só quer os desastres do Continente; é bem certo de que, quando este obedecer sinceramente a uma só e mesma influência, debaixo da direcção do maior dos Monarcas, em breve ficará acabado o despotismo marítimo de uma ilha que só deve momentaneamente o seu salvamento à divisão que os seus estipendiários têm sempre tido a arte de semear entre aqueles cujo evidente interesse é coligar-se contra ela. 


[Fonte: 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 23, 10 de Junho de 1808].

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Nota: 

O desenrolar dos acontecimentos impediu que essas particularidades chegassem a ser publicadas na Gazeta de Lisboa. Acúrsio das Neves, por outro lado, descreve da seguinte forma (crítica) esse "notável festim": "procurava Junot suavizar os seus males, distrair a atenção dos principais cidadãos de Lisboa e intimidar o povo por meio de um espectáculo em que o luxo, a licença e a vaidade se combinavam com o terror, para os mesmos fins: uma ceia, precedida de danças e de concertos, no teatro de S. Carlos na noite de 8 para 9 de Junho. Nada lhe esqueceu para fazer este acto ao mesmo tempo majestoso e terrível; agradável somente o pôde fazer aos seus e a um pequeno número de portugueses que o seguiam. Quatro mil aguadeiros rodeavam o edifício com os seus barris cheios de água, para prevenirem qualquer incêndio; numerosas tropas, tão prontas e armadas como se estivessem para entrar em combate, guarneciam as ruas até uma grande distância; e por estes preparativos se pode julgar do resto. 
Foi grande o número dos convidados de ambos os sexos e de todas as classes, os quais, para entrarem no teatro, tinham de atravessar largo espaço por entre as fileiras destes assassinos, que, nas pontas das suas baionetas, lhes apresentavam a imagem da morte. Os homens entravam sem aparato; para receberem as senhoras, achavam-se quatro pajens no vestíbulo, que anunciavam a sua chegada a quatro Ajudantes de Ordens que ali as vinham receber e as conduziam até à porta interior do teatro, onde o General Margaron fazia as honras da casa.
A plateia tinha-se elevado a correr direita com o tabelado, e à roda dela se colocaram várias ordens de assentos, ficando livre o centro para as danças. No topo estavam três cadeiras de braços, a orquestra nas varandas das Pessoas Reais, e na frente se via, entre outras decorações, o busto de Napoleão em pintura, servindo-lhe de peanha quatro bandeiras francesas encruzadas, nas quais se liam os famosos nomes de Marengo, Austerlitz, Jena e Firedland. Por baixo delas estava a bandeira russiana [sic], de cuja humilhação neste dia foram testemunhas o Almirante Seniavin e toda a sua oficialidade.
Enquanto entravam os convidados, foram-se estes arranjando como puderam, ficando sempre vazias as três cadeiras de braços; apenas junto o concurso, anunciou-se a chegada de Junot, e tudo foi reboliço para o virem receber à entrada e o conduzirem até à cadeira do meio, que foi ocupar, dando as dos lados a duas damas que o acompanharam e sobressaíam ao resto da companhia, como novas Vénus no meio do coro das suas ninfas. Rompeu então a orquestra e começaram as danças, que levaram uma grande parte da noite. Depois delas correu-se o pano, e apareceu sobre o tabelado uma espécie de barraca de campanha, e dentro desta a mesa, que foi somente para as senhoras. Os homens, de que uma parte, principalmente dos de certa ordem, tinham subido para os camarotes, a fim de disfarçarem o desgosto em que se viam, pela mistura em que se achavam, e em que irremediavelmente tinham deixado as suas famílias, foram obrigados a descer para a ceia; por entre os bastidores, e de pé, é que foram comendo alguma coisa, de sociedade com os soldados, com os serventes, e com todo o lixo que por ali se achava. Dizem os que assistiram que não foi a mesa a que ostentou o luxo desta esplêndida função" [Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 99-102].

Aviso de Lagarde (10 de Junho de 1808)


Aviso indispensável para o Público.

No número mui grande petições que diariamente se me apresentam, e que, antes de deferir-lhes, estou no costume de remeter aos Corregedores e Juízes do Crime de cada bairro de Lisboa, para a verificação dos factos locais, deixam quase sempre as partes interessadas de indicar a sua residência e a da parte contra quem requerem, como também o bairro em que umas e outras moram; e como depois não vêm buscar os seus requerimentos, ficam estes postos de parte na Secretaria da Intendência Geral, sem que se possam enviar a parte alguma, por não se saber a que bairro de Lisboa são concernentes.
Portanto fica avisado o Público de que as ditas indicações são indispensáveis, especialmente pelo que respeita a Lisboa, nas petições que se apresentarem ao Senhor Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino, e que ele se virá obrigado a dar de mão àquelas em que se omitissem, 48 horas depois da publicação do presente aviso.
O Conselheiro do Governo, Intendente Geral da Polícia do Reino de Portugal,

P. Lagarde

[Fonte: 1.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 23, 10 de Junho de 1808].

Decreto do Príncipe Regente ordenando que por mar e por terra se faça a guerra a Napoleão e aos seus vassalos (10 de Junho de 1808)





Havendo o Imperador dos Franceses invadido os meus Estados de Portugal da maneira mais aleivosa e contra os Tratados subsistentes entre as duas Coroas, principiando assim, sem a menor provocação, as suas hostilidades e declaração de guerra contra a minha Coroa; convém à dignidade dela, e à ordem que ocupo entre as Potências, semelhantemente a guerra ao referido Imperador e aos seus vassalos; e portanto ordeno, que por mar e por terra se lhes façam todas as possíveis hostilidades, autorizando o corso e armamento a que os meus vassalos queiram propor-se contra a nação francesa; declarando que todas as tomadias e presas, qualquer que seja a sua qualidade, serão completamente dos apresadores, sem dedução alguma em benefício da minha Real fazenda. A Mesa do Desembargo do Paço o tenha assim entendido e o faça publicar, remetendo este por cópia às estações competentes, e afixando-o por editais. 
Palácio do Rio de Janeiro, em 10 de Junho de 1808. 

Com a rubrica do Príncipe Regente

[Fontes: Julio Firmino Judice Biker, Suplemento á Collecção dos Tratados, Convenções, Contratos e Actos Publicos celebrados entre a Corôa de Portugal e as mais potências desde 1640 – Tomo XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878, p. 107; Antonio Delgado da Silva, Collecção da legislação Portugueza desde a ultima compilação das ordenações, - Volume 5 (1802-1810), Lisboa, Typografia Maigrense, 1826, p. 519. A cópia digitalizada do edital foi extraída do site archive.org ].


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Nota: 


Como fica entendido, o decreto acima transcrito foi remetido à Mesa do Desembargo do Paço, que na data de 15 de Junho o mandou publicar por edital. A 10 de Junho o Príncipe Regente tinha remetido o mesmo decreto ao Conselho Militar, que também o publicou por edital a 15 de Junho.

Catálogo dos objectos escolhidos por Geoffroy Saint-Hilaire entre as colecções do Gabinete de História Natural da Ajuda, destinados às colecções do Museu de História Natural de Paris (10 de Junho de 1808)

















REINO ANIMAL







1.ª Classe – Os Mamíferos




Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares

Macacos sakis Singes sakis 1 a 3 3 3

Macacos saguis Singes sagouins 4 a 13 10 11

Macacos cebus Singes sapajous 14 a 19 6 6

Macacos ateles Singes ateles 20 a 21 2 2

Macacos urradores Singes hurleurs 22 a 24 3 11

Lóris Loris 25 a 26 2 2

Morcegos  Vespertilion 27 1 1

Preguiça (mais um esqueleto) Paresseux 28 a 29 2 3

Mirmecófagos Myrmécophages 30 a 32 3 3

Tatus Tatous 33 a 36 1 4

Peixe-boi (mais um esqueleto) Lamantin 37 1 2

Hiena Hyène 38 1 1

Mão-pelada Chien crabier 39 1 1

Lobos Loups 40 a 41 2 2

Felis Felis 42 a 47 6 6

Jupará Potol [sic] 48 1 1

Quati Coati 49 a 50 2 2

Mustelas Musteles 51 a 52 2 2

Lontra Loutre 53 1 1

Mus Mus 54 a 56 1 3

Paca Paca 57 1 1

Esquilos Écureuils 58 a 60 3 3

Ratos de campo Loirs 61 1 1

Lebre Lièvre 62 1 1

Pika Lagomis 63 1 1

Muflão Mouflon 64 1 1

Golfinho Dauphin 65 1 1

Total de mamíferos 65 76




2.ª Classe – As Aves




Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares

Aves de rapina diurnas Oiseaux de proie diurnes 1 a 14 14 14

Aves de rapina nocturnas Oiseaux de proie nocturnes 15 a 16 2 2

Picanços Piegrièches 17 a 23 7 13

Caneleiros Bécardes 24 a 30 7 17

Papagaios Perroquets 31 a 52 22 30

Tucanos Toucans 53 a 54 2 14

Barbudos Barbus 55 a 58 4 6

Gaios Geais 59 a 63 5 6

Tropeiros Troupiales 64 a 75 12 6

Curucuí Couroucous 76 1 1

Cucos Coucous 77 a 78 2 8

Pegas Pies 79 a 90 12 16

Guarda-rios Martin-Pêcheurs 91 a 94 4 4

Calau Calao 95 1 1

Colibris Colibris 96 a 100 5 5

Patos Canards 101 a 105 5 6

Albatroz  Albatros 106 1 1

Pinguim Manchot 107 1 1

Petrel Pétrel 108 1 1

Fragata Frégate 109 1 1

Mobelhas Plongeon 110 1 1

Secretário Secrétaire 111 1 1

Ostraceiro Huîtriers 112 1 1

Maçarico Courli 113 1 1

Pernilongo Échasse 114 1 1

Fuselo Barge 115 1 1

Narceja Bécassine 116 1 1

Galinhola marinha Râle 117 a 118 2 3

Arapapá Savacou 119 1 1

Galinha d'água Poule d'eau 120 1 1

Abibes Vanneaux 121 a 122 2 2

Sisão Cannepetière 123 1 1

Perdiz Perdrix 124 1 1

Tetraz Tétras 125 a 127 3 3

Tinamus Tinamous 128 a 134 7 7

Faisões Faisans 135 1 1

Mutum Hocco 136 a 138 3 3

Pombos Pigeons 139 a 144 6 7

Cruza-bicos Loxias 145 a 170 26 32

Sombrias Ortolans 171 a 177 7 7

Andorinhas Hirondelles 178 a 179 2 2

Pipridae Manaquins [sic] 180 a 189 10 20

Melros  Merles 190 a 199 10 21

Cotingas Cottingas 200 a 207 8 11

Tangarás Tangaras 208 a 222 15 75

Papa-moscas Gobemouches 223 a 233 11 13

Calhandra Alouettes 234 1 1

Jacamar Jacamar 235 a 237 3 3

Ema Thoyou 238 1 1

Total de aves 238 384 [sic]




3.ª Classe – Os Répteis




Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares

Iguanas Iguanes 1 a 4 4 6

Scincidae Scinques 5 a 6 2 2

Salamandras Salamandres 7 a 8 2 2

Lagartos Lézards 9 a 13 5 5

Crocodilos Crocodiles 14 a 17 4 8

Tartarugas Tortues 18 a 20 3 4

Sapo Crapaud 21 1 1

Pipa Pipa 22 1 1

Serpentes Serpens 23 a 25 3 3

Total de répteis 25 32




4.ª Classe – Os Peixes




Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares

Moreia Murène 1 1 1

Gimnotos Gymnote 2 1 2

Bacalhau Gade 3 1 1

Dourada Cryphene 4 1 1

Cótido [peixe-aranha?] Cotte 5 1 1

Linguados Pleuronectes 6 a 7 2 2

Peixes-borboleta Chetodons 8 a 10 3 3

Esparídeos Spare 11 a 18 8 11

Pimpim Cabres [sic] 19 a 24 6 8

Lutjanos Lutjan 25 a 29 5 5

Bodião Bodian 30 a 31 2 2

Holocentros Holocentre 32 a 35 4 4

Perca Perche 36 a 37 2 2

Peixe-papagaio Scare 38 a 39 2 2

Esgana-gata Gasterostés 40 a 41 2 2

Carapau Scombre 42 a 43 2 2

Salmonete Trigle 44 a 46 2 3

Siluros Silures 47 a 62 17 21

Peixes-corneta Fistulaire 63 a 64 2 2

Salmão Salmone 65 a 67 3 3

Lúcios Ésoces 68 a 69 2 2

Carpas Cyprins 70 a 72 3 3

Peixes-cofre Coffre 73 a 74 2 2

Tetraodontes Tétrodons 75 a 77 3 3

Peixe-agulha Syngnathes 78 1 1

Peixe-porco Balistes 79 a 82 4 4

Tamboril Lophie 83 a 86 4 4

Raias Raies 87 a 89 3 3

Total de peixes 89 97 [sic]




5.ª Classe – As Conchas




Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares


Vatelles [ou l'atelles?] 1 a 3 3 7

Abalones Ormies 4 a 5 2 5


Lelices 6 a 57 50 94


Sabots  58 a 59 2 3


Toupies 60 a 66 7 10


Murex 67 a 76 9 13


Strombes 77 a 79 3 6


Casques 80 a 95 16 20

Buccins 96 a 153 57 77


Volutes 154 a 157 4 8


Olives 158 a 180 23 35

Porcelanas Porcelaines 181 a 205 25 30


Tyaux 206 a 210 5 9

Ostras Huîtres 211 a 228 18 21


Pelermes 229 a 230 2 2

Mexilhões Moules 231 a 237 7 20


Cames 238 a 269 32 100

Lingueirão  Solens 270 a 274 4 5

Balanus Balanites 275 a 277 3 3

Total de conchas 277 468




6.ª Classe – Os Crustáceos




Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares

Caranguejos Crabes 1 a 5 5 12




7.ª Classe – Os Insectos




1.º Himenópteros

Nome em português Nome em francês Números Espécies Exemplares

Donzelinhas Demoiselles 1 a 2 2 3

Vespas Guêpes 3 a 17 15 31

Vespas-cavadoras Sphex 18 1 1

Formigas Fourmies 19 a 24 6 13

2.º Coleópteros

Lucanos Lucanes 25 1 1

Escaravelhos Scarabées 26 a 48 23 35

Cetónias Cétoines 49 a 63 15 39

Gorgulhos Charançons 64 a 87 23 56

Joaninhas Coccinelles 88 a 89 2 4


Taupins 90 a 91 2 4

Besouros Richards 92 a 94 3 6

Cantárida Cantharide 95 1 1

Bicho-da-farinha Tenebriouns 96 1 1

Capricórnios Capricornes 97 a 118 21 26

Carochas Carabes 97 a 118 21


3.º Ortópteros

Baratas Blattes 119 2 3

Louva-a-Deus     Mantes 120 1 1

4.º Hemípteros

Cigarras Cigales 121 a 122 2 4


Fulgores 123 1 2

Conchonilhas Cochenille 124 Mistura

5.º Lepidópteros

Ninfas Nymphes 125 a 140 15 27

Guerreiros [?] Guerriers 141 a 264 123 234

Mariposas Sphinx 265 a 281 16 23

Falenas Phalènes 282 a 287 6 10

Bichos da seda Bombyx 288 a 291 4 4

6.º Dípteros

Moscas Mouches 292 a 294 3 9




Total de insectos 294 538


















REINO VEGETAL







§ 1. Plantas secas conservadas em herbários




Descrição Número de maços Número de plantas

1. Herbário feito no Brasil, por Alexandre Rodrigues Ferreira 22 1134

2. Herbário do Brasil, pelo Dr. Veloso 2 129

3. Herbário do Brasil, pelo Dr. Veloso 3 117

4. Herbário de Angola, por Da Silva 5 216

5. Herbário do Cabo da Boa Esperança, por Macé 1 83

6. Herbário do Perú 3 289

7. Herbário do Cabo Verde, por Feijó 12 562

8. Herbário de Goa 1 35

9. Herbário da Conchinchina, pelo Dr. Loureiro 1 88

10. Herbário de Upssala [Suécia], pelo Dr. Thunberg 1 182

Total de plantas em herbário 2855




§ 2. Outros produtos vegetais




Descrição Número de pacotes

Raízes do Brasil 4

Frutos secos 7

Cascas de árvores 14

Total 25















REINO MINERAL







§ 1. Minerais do Brasil




1.º Gemas

N.º 1 - 3 safiras das minas dos Índios Mucalizes [sic].

N.º 2 - 3 gotas de água (crisoberilos?) de [Minas] Gerais.

N.º 3 - 6  crisoberilos, ditos crisólitos.

N.º 4 - 4 outros das Minas Gerais.

N.º 5 - 3 berilos.

N.º 6 - 2 jacintos

N.º 7 - 7 granadas cristalizadas, com mistura de ferro.

N.º 8 - Granadas em pó (um pacote).

N.º 9 - 12 pequenos rubis.

N.º 10 - 1 topázio do Rio de Janeiro.

N.º 11 - 2 gemas em bruto (jacintos?)

2.º Pedras

N.º 12 - 1 cristal de rocha, oco por dentro.

N.º 13 - 2 cristais com titânio.

N.º 14 - 1 cristal fumado.

N.º 15 - 2 cristais de ametista.

N.º 16 - 3 cristais com mica.

N.º 17 - 1 cristal com agulha de cobalto.

N.º 18 - 5 cristais polidos (pedra da mina nova?) [sic].

N.º 19 - 3 cristais sobre Gagnes [sic] em lâminas.

N.º 20 - 2 cristais provenientes de blocos polidos.

N.º 21 - 2 ágatas em bruto.

3.º Pedras magnésicas

N.º 22 - 1 fragmento de esteatite branca.

N.º 23 - 1 fragmento de pedra branca.

N.º 24 - Mica cristalizada, negra, do Maranhão.

N.º 25 - Mica cristalizada, violeta, do Maranhão.

N.º 26 - Mica cristalizada, amarela, de leste de Cobra.

N.º 27 - Mica cristalizada, verde, do Ceará.

N.º 28 - Mica cristalizada, de Rio das Velhas.

N.º 29 - Mica em lâminas (moscovita).

N.º 30 - Amianto.

4.º Pedras compostas.

N.º 31 - Granito de Syrangu [sic].

N.º 32 - Granito das Cachoeiras de Rio Negro.

5.º Metais

N.º 33 - Ouro e platina em pó.

N.º 34 - Ouro puro em pó.

N.º 35 - Ouro negro cristalizado.

N.º 36 - Ouro amarelo cristalizado.

N.º 37 - Ouro sobre pirites, sendo estas em número de 7.

N.º 38 - Filão de ouro num quartzo.

N.º 39 - Ouro em lâminas sobre jaspe.

N.º 40 - Ouro misturado com ferro.

N.º 41 - Ouro sobre e dentro dum cristal de rocha.

N.º 42 - 27 amostras de cobalto, gangas e mineralizadores diferentes.

N.º 43 - 30 amostras de ferro, em diversos estados (às quais se referem, assim como o cobalto, 2 memórias).

N.º 44 - 6 amostras de cobre.

N.º 45 - 3 de galena

N.º 46 - 1 de molibdénio.

N.º 47 - 80 das mesmas minas, tomadas em lugares diferentes das primeiras.

6.º Betumes

N.º 48 - 7 pacotes de diversos tipos (para análise).




§ 2 - Minerais do Brasil e de Portugal




N.º 49 - 3 granadas de Belas.

N.º 50 - 1 jacinto de Coimbra.

N.º 51 - Mica da Serra da Estrela.

N.º 52 - Asbesto.

N.º 53 - Xisto de Cuiabá.

N.º 54 - Galena de Coja.

N.º 55 - 4 amostras das minas de ferro do Algarve.




§ 3 - Minerais alheios ao Brasil e a Portugal.




N.º 56 - Mica cristalizada de Cabo Verde.

N.º 57 - Cobre do México.

N.º 58 - Mina de ferro de Angola.

N.º 59 - 2 amostras de produtos vulcânicos de Cabo Verde.







Todos os objectos mencionados no presente catálogo foram escolhidos por mim, ou porque faltam na colecção do Museu de História Natural [de Paris], ou porque encontram-se apenas num estado de inferioridade.
Feito em Lisboa, 10 de Junho de 1808.

O Comissário de Sua Excelência o Ministro do Interior 
[Geoffroy Saint-Hilaire].


[Fonte: E.-T. Hamy, "La mission de Geoffroy Saint-Hilaire en Espagne et en Portugal (1808). Histoire et documents", in Nouvelles Archives du Muséum d'Histoire Naturelle, Quatrième série - Tome dixième, Paris, Masson et C. Éditeurs, 1908, pp. 1-66, pp. 59-65].