sábado, 11 de junho de 2011

Acordo entre a Junta de Granada e a Junta de Sevilha e respectivas ratificações (11 e 17 de Junho de 1808)




Acordo que depois de uma conferência séria e bem ponderada, em nome das duas Juntas Supremas das cidades de Sevilha e de Granada, fizeram por parte da de Granada o Senhor D. Rodrigo Riquelme, Regente da sua Real Chancelaria, e por esta de Sevilha o Excelentíssimo Senhor D. Andrés Miñano, e o Reverendo Padre Metropolitano Manuel Gil, Vogais da Suprema Junta, e acordaram as proposições seguintes:

1.ª Que aquele exército [de Granada], seus movimentos, etc., se dirijam pelo General em Chefe do de Sevilha [General Castaños], o qual fará o seu plano contando com aquelas tropas, que estarão prontas à sua ordem, por ter sido Sevilha o Reino invadido, e que está em perigo; sob a condição de que se Granada ou o seu Reino fosse acometido, fará o mesmo e cuidará da sua defesa o General em Chefe e o Exército de Sevilha.

2.ª Que estando a Junta Suprema de Sevilha a negociar com os ingleses, e tendo mais parte que outra província para isto, Granada desde logo acede e consentirá no que trate esta Junta, certa de que velará e olhará pelo interesse daquele Reino, e pelo de toda a nação.

3.ª Que tudo o que fica dito se entende e aplica até que seja restituído ao trono o nosso Rei e Senhor o Senhor D. Fernando VII, de quem se espera que, convocando as Cortes, ou por outro meio, tratará do bem geral da nação.

Sevilha, 11 de Junho de 1808.

Andrés de Miñano
Rodrigo Riquelme
Manuel Gil, Clérigo menor.


Visto este acordo na Junta geral [de Sevilha] celebrada no mesmo dia, concordaram os seus membros aprovar, como aprovaram, os capítulos concertados e acordados entre os respectivos Senhores Comissionados, e mandou que se proceda à sua execução, o que certifico.

António Zambrana Carrillo y Albornoz
Juan Fernando de Aguirre
Fr. Josef Ramirez
Josef Morales Gallego
Francisco Checa, Secretário


E visto na sessão celebrada [pela Junta de Granada] no dia de ontem [i.e., 16 de Junho], acordou esta Junta a sua ratificação e cumprimento em todas as suas partes.

[D. Joaquim Pascal Baniga, 1.º Secretário
D. Rafael Anogo, 2.º Secretário]


Carta de mr. Hermann ao Corregedor da Comarca do Porto, José Teixeira de Sousa (11 de Junho de 1808)



Em consequência das ordens do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor General em Chefe do Exército de Portugal, participo a Vossa Mercê que, ficando Sua Excelência sumamente satisfeito da conduta dos habitantes na ocasião da saída da tropa espanhola que se achava nessa cidade, [e] na firmeza das intenções dos mesmos habitantes, manifestada pela tranquilidade que entre si conservarão e conservam, me ordenou que significasse a V.ª Mercê o referido para o fazer presente à Ilustríssima Câmara dessa cidade, e que igualmente lhe louva o zelo e actividade com que procedeu, esperando Sua Excelência que se porá em prática todos aqueles meios e providências que possam concorrer para que nem na mais pequena parte se altere o sossego público, em execução das ordens que se têm expedido por este Governo e que devem ser constantemente observadas; ficando na inteligência de que quaisquer proposições proferidas pelos espanhóis não podem ter outro objecto e fim que não seja perturbar a tranquilidade que o Governo com tão eficazes providências mantém em benefício geral, e prejudicar a felicidade dos povos. E participo igualmente para também o fazer presente na Câmara que imediatamente parte para essa cidade um General [Loison] com tropa suficiente para manter a segurança pública dessa mesma cidade e suas dependências, prevenindo-se para este efeito de antemão as acomodações necessárias para a receber na forma do costume, e fazendo-se limpar os quartéis públicos, de maneira que se possa servir deles sem o perigo de qualquer contágio que as tropas espanholas possam ter deixado. 
Deus Guarde a Vossa Mercê. 
Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, em onze de Junho de mil oitocentos e oito. 

Francisco Antonio Herman [sic]

[Fonte: Livro 98 das Vereações da Câmara do Porto, fls. 40, apud Artur de Magalhães Basto, "O Porto contra Junot" (Segunda Parte), in Revista de Estudos Históricos, vol. 1, nº. 3, 1924, pp. 88-89].

Primeira proclamação do novo rei de Espanha, D. José Bonaparte (11 de Junho de 1808)


D. José, pela graça de Deus, Rei da Espanha, Maiorca, Minorca, Gibraltar, do Continente da América, Ilhas, etc., etc., etc.

Aos Vice-Reis, Capitães-Generais, Governadores, Corregedores, e a todos os outros oficiais civis e militares, de qualquer denominação que sejam, e a todos os habitantes dos domínios da Espanha nas Índias Orientais e Ocidentais, faço saber que:
Em virtude dos Tratados de 5 e 10 de Maio [...] passado, pelos quais El-Rei Carlos IV e os Príncipes de sua Casa formalmente resignaram todo o direito e título à Coroa de Espanha e todos os domínios que lhe pertencem, a favor do meu caro e augusto irmão Napoleão I, Imperador dos franceses, Rei de Itália, etc., etc., que foi benignamente servido conferir-me o mesmo aos 4 do presente mês [facto que se tornou público no seguinte dia 6]. Os meus desejos e a minha ambição têm sido vir à Espanha e tomar sobre mim o Governo do país, dedicar-me à felicidade e interesses do povo que a Providência tem entregue ao meu cuidado, e pôr em execução os regulamentos que se farão na Junta dos Representantes e Notáveis do Reino; a qual Junta está agora em Bayonne e será outra vez convocada naquele lugar aos 15 do corrente; em ordem a tomar em consideração os meios de estabelecer um Governo justo e permanente, e de colocar a Espanha, com todos os seus domínios exclusivos, em melhor pé, assegurando a sua independência e elevando-a àquela graduação, na escala das nações, em que ela antigamente se distinguiu, e que os seus habitantes são ainda dignos de gozar. Para conseguir estes fins, tenho aceitado a coroa. Apresso-me a fazer esta declaração do meu paternal cuidado pela vossa felicidade, e assegurar-vos que trabalharei igualmente pelo bem das mais remotas partes dos meus domínios. Confiando na minha Real palavra, continuareis a gozar de todos os vossos privilégios como bons vassalos. Continuai em paz nas vossas ocupações ordinárias, sede obedientes aos vossos superiores, e guardai-vos das maquinações daqueles que não lhes importam com as leis. A justiça deve ser administrada com imparcialidade, e eu ordenarei estritamente a todos os Magistrados que executem a minha vontade neste ponto. Olhai para mim como vosso Protector; eu tomarei sempre a peito os vossos interesses, e duplicarei os meus esforços para vos defender do ataque que meditam contra vós os implacáveis inimigos da Espanha. 
Eu ordeno a todos os Arcebispos, Bispos e Ministros da Religião, que eu prometo manter inviolável, que usem de toda a sua influência entre o povo para o fazer obediente às leis, e guardá-lo das perigosas consequências da sedição e traição. Eu repito a minha declaração, que o meu governo será fundado em justiça, e o meu único objecto será o fazer a vossas felicidade. Todos os Governadores, Juízes, etc., serão obrigados a dar a esta proclamação a maior publicidade. 
Dado em Bayonne, aos 11 de Junho de 1808.

Eu El-Rei

Por ordem de El-Rei nosso benigníssimo Soberano,



Carta circular do General Sepúlveda a todos os Capitães mores de Trás-os-Montes (11 de Junho de 1808)





A venturosa e geral notícia que acabo de receber não me dá mais lugar do que a remeter-lhe o edital incluso, que Vossa Mercê mandará fixar e fazer público em toda a extensão do seu comando sem demora, para que todos os indivíduos compreendidos no dito edital concorram gostosos a alistar-se na tropa que vai a formar-se para defesa do nosso Augusto Soberano e da Pátria.
Deus Guarde a Vossa Mercê.
Quartel-General de Bragança, 11 de Junho de 1808.

Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda 

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[Fonte: Demonstração analytica dos barbaros e inauditos procedimentos adoptados como meios de justiça pelo Imperador dos francezes para a usurpação do throno da Serenissima e Augustissima Casa de Bragança, e da Real Coroa de Portugal, com o exame do Tratado de Fontainebleau, Exposição dos Direitos Nacionais e Reaes, e da informe Junta dos Tres Estados para supprir as Cortes. Offerecida ao Juizo imparcial das Nações Livres, Lisboa, Impressão Regia, 1810, pp. 222-223. Diz o autor desta obra que a carta “que se dirigia a Torre de Moncorvo, ao Capitão Mor António Luís de Carvalho, incluia o P.S. do teor seguinte: «V.M. [Vossa Mercêmandará vigiar as barcas com toda a actividade, e dirigirá às visinhanças de Almeida algumas pessoas capazes de observar os movimentos do inimigo comum; avisando-me com frequência de tudo quanto houver de novo”].

Edital do General Sepúlveda perdoando a deserção e convidando os transmontanos a alistarem-se para segurança da província (11 de Junho de 1808)



Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda, Comendador da Ordem de Cristo, etc., etc., Governador da província de Trás-os-Montes.

Achando que era do meu dever, nas presentes circunstâncias, ter todo o cuidado na segurança desta província, mais particularmente por haver nela tropas de linha; faço saber a todos os desertores que, em nome do Príncipe Regente de Portugal nosso soberano, perdoo a todos os desertores que, dentro de quinze dias se recolherem a esta cidade e se alistarem em minha presença nas tropas que vou a organizar, debaixo de oficiais que deram provas de sua fidelidade no último rendimento do inimigo. Convido igualmente a alistarem-se aqueles que ajudaram naquela acção, e lhes prometo rações e outros provimentos. Na presente situação dos negócios, nada mais é necessário para excitar os verdadeiros portugueses, considerando o exemplo dos vizinhos os espanhóis.
Dado no nosso Quartel-General de Bragança, aos 11 de Junho de 1808.

Sepúlveda

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[Fontes: Sepúlveda Patenteado, ou Voz Pública, e Solene depositada em documentos autênticos que devem servir para resolver a questão: quem foi o primeiro chefe e proclamador da revolução transmontana em 1808?, Londres, Impresso por T. C. Hansard, 1813, p. 21; Claudio de Chaby, Excerptos Historicos e Collecção de Documentos relativos á Guerra denominada da Peninsula e ás anteriores de 1801, e do Roussillon e Cataluña - Volume VI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, p. 37 (doc. 25); existe ainda uma outra versão desta proclamação, provavelmente re-traduzida para português a partir de uma tradução estrangeira, publicada no Correio Braziliense de Outubro de 1808, pp. 345-346; versão esta que também foi republicada na Demonstração analytica dos barbaros e inauditos procedimentos adoptados como meios de justiça pelo Imperador dos francezes para a usurpação do throno da Serenissima e Augustissima Casa de Bragança, e da Real Coroa de Portugal, com o exame do Tratado de Fontainebleau, Exposição dos Direitos Nacionais e Reaes, e da informe Junta dos Tres Estados para supprir as Cortes. Offerecida ao Juizo imparcial das Nações Livres, Lisboa, Impressão Regia, 1810, pp. 218-219]. 

Um painel de azulejos alusivo ao início da revolta de Bragança





Painel de azulejos (inaugurado em 11 de Junho de 1929)
existente no exterior da igreja de S. Vicente em Bragança. 
Na sua legenda pode ler-se o seguinte:

O heróico brigantino Tenente General Manuel Jorge Gomes de Sepúlveda na tarde do dia 11 de Junho de 1808, nas escadas da igreja de São Vicente, falando ao povo de Bragança que o aclama como chefe do movimento que iniciou a libertação de Portugal do domínio francês.


Restauração de Bragança (11 de Junho de 1808)


Um General português põe-se à frente da revolução, expede ordens, proclama aos povos, convida outros Generais a se lhe unirem, abre correspondências com Espanha, principia a organizar um exército, procura os meios de o sustentar e de levantar o estandarte português até o centro da dominação intrusa. É o General Sepúlveda, e é em Bragança, título antigo da Real Casa reinante, que se concebem e executam estes projectos. 
O abade de Carrazedo, Manuel António de Sousa e Madureira Cirne, tendo em sua casa a administração do correio, foi o primeiro que, a 11 de Junho pelas 5 horas e meia da tarde, recebeu por uma carta a notícia da prisão dos franceses no Porto. A carta é lida em voz alta a várias pessoas que se achavam presentes; aparecem mais cartas que confirmam esta notícia, acrescentando algumas que Junot devia também ter sido preso em Lisboa, e principiam imediatamente os vivas, de que foram autores o abade, o cónego Bento José de Figueiredo Sarmento, o bacharel Pedro Álvares Gato, e o médico António Afonso Dias Veneiros, e a que responderam todos os assistentes e o povo que se foi ajuntando com um entusiasmo inexplicável. De casa do abade saíram todos a procurar o General, que se achava na igreja de São Vicente assistindo à trezena de Santo António; e com ele voltaram, para darem as providências oportunas ao seu Quartel-General. Já o povo se encontrava aos montes, repetindo os vivas; já repicavam os sinos da catedral, por ordem do cónego Bento José de Figueiredo, e lhes respondiam os das outras igrejas da cidade; não se divisando senão alegria, desde o General até o último indivíduo do baixo povo.
Mas nem todas as autoridades se decidiram logo pela restauração, posto que nenhuma a impugnou abertamente. Houveram funcionários públicos que, apenas informados deste grande reboliço, foram procurar o General com os semblantes amarelos, a perguntar-lhe que novidade era aquela; ao que ele respondeu, conduzindo-os a uma janela e mostrando-lhes as ruas cobertas de povo, que clamava em altas vozes: viva o nosso Príncipe e a Real Casa de Bragança; morram os franceses; e também se ouvia: viva o nosso General. Ali têm o que é, lhes disse Sepúlveda; vejam se se atrevem a acomodar todo este povo. Não houve réplica, porque esta resposta não a admitia.
Sancionado com prazer pelo General este glorioso acto, seguiram-se salvas Reais, e nessa noite e nas seguintes se iluminou toda a cidade; sem outra alguma ordem ou insinuação, que o exemplo do mesmo General e dos outros patriotas que com ele se tinham posto à frente. Começou também desde logo a cuidar-se no essencial, que era procurar armas e soldados, providenciar os meios de sustentar a tropa e consolidar a revolução.
O General pois fez trabalhar incessantemente no concerto de uma porção de armamento velho que havia na cidade, enquanto não se podia conduzir de Chaves o que ali se achava. Publicou um edital datado do mesmo dia 11, por onde chamava às armas todos os transmontanos, e principalmente os militares que tinham obtido baixas no tempo do governo intruso, obrigando-os a se reunirem aos seus corpos, e perdoava, em nome do Príncipe Regente, o crime de deserção simples a todos os que nele se achassem compreendidos, contanto que se apresentassem no termo de 15 dias. Expediu ordens aos Governadores e Capitães mores da província para fazerem a aclamação nos seus respectivos territórios, e para que toda a paisanagem se pusesse pronta a combater o inimigo, se intentasse invasão. Ordenou também com particular cuidado que se cortasse a comunicação das barcas do Douro, para embaraçar ao inimigo a sua passagem, se a tentasse da parte de Almeida.
O dia 12 principiou pelas cerimónias religiosas, assistindo o General com o seu Estado-Maior, a Câmara, nobreza e povo à acção de graças que se celebrou na catedral, em que orou o Governador do Bispado Paulo Miguel Rodrigues de Moraes, um dos homens que trabalharam com grande zelo nesta empresa, e com muita utilidade, inflamando os povos e especialmente o corpo do clero com a sua autoridade e persuasões, e por meio de ordens que expediu a todos os párocos do Bispado. Aí mesmo se ornaram todos com o tope nacional, os eclesiásticcos sobre o peito, os seculares no chapéu.
Voltaram depois a continuar as suas fadigas militares, de que o objecto principal consistia então em reorganizar e armar os regimentos de linha e milícias da província. Começou-se pelo de infantaria n.º 24, debaixo do comando do Capitão Bernardo de Figueiredo Sarmento, que pelo seu comportamento e trabalhos merece uma memória honrosa, e pelo de cavalaria n.º 12, debaixo do comando do seu Coronel Amaro Vicente Pavão de Sousa. A necessidade aumenta prodigiosamente as forças do homem; Sepúlveda, velho e doente, trabalhava como faria um moço robusto; mas ele se achava rodeado de um grande número de fiéis portugueses, que o ajudavam com todas as suas forças; e devem contar-se neste número seus filhos, seus genros, e numa palavra toda a sua família.
Tal era o estado das coisas em Bragança, quando chegou novo correio do Porto, que em lugar de notícias lisonjeiras que se esperavam com alvoroço, trouxe as ameaçadoras cartas de Hermann e Lagarde*, e a certeza de que em Lisboa não tinha havido novidade, e o Porto tinha reentrado nos ferros. O terror produziu prontamente os seus efeitos, um dos quais é aumentar extraordinariamente a ideia do perigo: reflectiu-se sobre a insuficiência dos meios de defesa contra os exércitos do conquistador, nas vinganças de Junot, e no abandono em que se consideravam aqueles povos, tendo dado um passo tão arriscado que não constava que outros imitassem; olhava-se para Almeida e imaginava-se a todo o instante que a divisão de Loison caía sobre Bragança; e para maior desgraça, corriam notícias confusas do exército de Bessières, o qual por esse tempo assolava a alta Castela, que eram bem capazes de produzirem novos sustos. 
Os espíritos pois vacilaram de tal modo que alguns daqueles mesmos que ao princípio se haviam mostrado mais resolutos, caíram na fraqueza de proporem ao General que se humilhasse perante o governo intruso. E quando estes assim pensavam, que fariam os outros que desde os primeiros momentos tinham manifestado a sua timidez? Formaram uma conspiração contra o General e contra os outros motores da revolução; e como alguns deles se achavam armados com a jurisdição, abriram uma devassa contra os mesmos General e mais patriotas, projectando nada menos que o criminá-los e prendê-los, para se livrarem a si próprios. A crise era arriscada, e o General se tirou dela por um lance de prudência; tendo chegado a pontos de dar algumas providências para se refugiar na Espanha, se tanto fosse necessário.
Congregou-se na sua presença um ajuntamento das pessoas principais que tinham figurado na acção, para se deliberar o que devia obrar-se; e falando cada um segundo o seu modo de pensar, Francisco de Figueiredo Sarmento (um dos genros do General) representou com energia a alternativa em que se achavam, de morrerem às mãos dos franceses com ignomínia, ou sustentarem a revolução com uma resistência heróica; e apoiou intrepidamente este último partido, como o único que convinha adoptar. O General, pensando como ele, e sustentando que não tinham outro meio de salvar as vidas senão resistindo, contemporizou destramente com os autores da contra-revolução, subscrevendo à proposta que importunamente lhe faziam como meio conciliatório de escreverem cartas ao governo intruso, humilhando-se-lhe e dando-lhe por desculpa que todos os actos até ali praticados tinham sido de absoluta necessidade, para suspender os movimentos do povo em tumulto; que as salvas e luminárias não tiveram outro objecto que a festividade de Santo António.
Disse-lhe pois o General que escrevessem e lhe fizessem também o borrão para a sua carta, o que eles praticaram; e ajuntando-se à noite em casa do mesmo General, este lha apresentou já posta em limpo. Era tal a precipitação em que eles se achavam, que depois de a lerem, passaram a fechá-la, sem advertirem que estava ainda por assinar; fecharam também as suas, e quiseram deixá-las ao General, para que as mandasse lançar no correio, ao que este não anuiu, dizendo-lhes muito a propósito que as levassem todas e as lançassem no correio, pois que tinham de passar-lhe pela porta para se recolherem a sua casas; mas por baixo de capa mandou ordem ao administrador para que não remetesse a sua, não obstante faltar-lhe a assinatura. Digo que esta lhe faltava por fé do próprio General, que o atesta; e eu acredito, não só pela persuasão em que estou da sua honra e verdade, mas também porque se assim não fosse, a mesma carta o desmentiria, pois existe, e ele o sabe, em poder de um homem que lhe disputa vivamente as honras da primazia na restauração, sendo na verdade um dos que mais se distinguiram nesta obra.
É o abade de Carrazedo, em cuja casa estava, como disse, a administração do correio, quem conserva a carta, e não há muito tempo que a vi nas suas mãos cerrada e lacrada com sobrescrito do General para o ministério da guerra do tempo do governo intruso. Para dizer que é a própria carta da questão, tenho, além dos outros fundamentos, o testemunho do mesmo abade, que acredito sem repugnância; porque por isso mesmo que ele disputa a primazia ao General, mais lhe convinha ocultar do que produzir este documento, em que muito se tem falado; porque produzindo-o, ratifica a ideia de que não chegou a ter efeito; e ocultando-o deixaria sempre em dúvida se o teve, e se o General retrocede nos seus honrados projectos**.
Que não retrocedeu, é uma verdade demonstrada pelos factos; pois não houve intermitência na expedição das suas ordens e [na] execução dos planos que se haviam traçado. Animem-me, ajudem-me, dizia este honrado velho aos honrados patriotas que o rodeava; eles o animaram e ajudaram, e a revolução fez progressos, não só por toda a província transmontana, mas também nas de Entre-Douro e Minho, e Beira Alta, correndo muito para este fim não só o exemplo mas também as participações e convites de Sepúlveda aos respectivos Generais e Governadores.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 136-148].


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* O teor da carta que Lagarde enviou ao Corregedor do Porto não devia deferir muito do daquela que enviou ao Juiz de Fora de Chaves, datada de 10 de Junho.

** [Nota original de Acúrsio das Neves] A controvérsia entre o General e o abade parece-me uma questão sem sujeito. O abade, recebendo primeiro as notícias do Porto, teve também ocasião de levantar primeiro a voz; mas ele mesmo reconheceu a necessidade ou pelo menos a importância da autoridade do General, indo logo procurá-lo com as mais pessoas que o acompanharam. O General principiou imediatamente a expedir ordens, e foi reconhecido por todos como chefe da revolução (qual outro o poderia ser na sua presença?); mas os actos foram tão seguidos e continuados, tão uniformes os sentimentos, e propagaram-se com tanta rapidez as vozes da restauração que se pode dizer que não houve senão um aclamador, que foi o povo de Bragança.


Notícia publicada no órgão de imprensa da Junta de Sevilha, sobre o desarmamento das tropas espanholas destacadas em Portugal (11 de Junho de 1808)



Lisboa, 11 de Junho 


É grande a fermentação que aqui se observa entre a tropa espanhola, embora não produza fruto algum; antes se vai tornando impossível, de dia para dia, restituírem-se estes soldados à sua pátria, ou virem a ter algum proveito nesta praça, pois acabam de ser desarmados. Não ocorreu assim no Porto, pois encontrava-se ali o General Belestá, que armou toda a tropa que tinha sob o seu comando e, apoderando-se esta do Corregedor mor, do General de divisão Quesnel, de Mr. Taboureau, Auditor do Conselho de Estado de Paris, do Coronel de Artilharia Picoteau, e de vários outros oficiais civis e militares, como também de um destacamento de Dragões, dirigiram-se à Galiza, acção esta que foi muito sensível aos franceses. O General Junot, receando que os demais imitem esta conduta e antes que sigam este exemplo, tomou o partido de desarmá-los, e não tardará em fazer o mesmo com o destacamento de Setúbal, e os regimentos de Caçadores de Valência e Múrcia, que se encontram completamente insurrectos contra os franceses. 

[Fonte: Gazeta Ministerial de Sevilla, n.º 7, en la Imprenta de la viuda de Hidalgo y Sobrino, 22 de junio de 1808, p. 51].

Notícias publicadas na Gazeta de Lisboa (11 de Junho de 1808)


Lisboa, 11 de Junho


As peças seguintes, que se acabam de fazer aqui públicas, indicam a mais atroz violação do Direito das Gentes, cometida no norte deste Reino, e as disposições que dela foram uma consequência necessária. Estas medidas estavam concertadas com tanta sabedoria, que se executaram aqui, a noite passada, sem que os habitantes de Lisboa nem sequer pensassem que nada houvesse de extraordinário, não cessando de reinar por um só instante a mais profunda quietação.


[seguia-se a proclamação de Junot e a sua ordem do dia, ambas de 11 de Junho]



Logo que a Câmara da cidade de Aveiro recebeu, em 17 de Maio, o feliz anúncio dos benefícios prometidos por Sua Majestade Imperial e Real à Deputação portuguesa, o publicou com repiques e pregão aos habitantes dela e seu termo, que à porfia manifestaram a sua alegria com luminárias por três dias, e na tarde do dia 22, unindo-se o Excelentíssimo Bispo com toda a satisfação à mesma Câmara, cantou o Te Deum na Sé pomposamente com todo o Clero, Comunidades Regulares, Ministros, Nobreza e Povo, em sinal do seu contentamento. 

Outro testemunho de igual regozijo é a carta seguinte dirigida ao Administrador da Casa da Gazeta. 





[Fonte: 2.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 23, 11 de Junho de 1808].

Ordem do dia de Junot sobre o aprisionamento das tropas espanholas (11 de Junho de 1808)





Exército de Portugal

Ordem do Dia 



Ordem do Dia do Exército de Portugal


Soldados, 

A conduta infame do General espanhol Belestá no Porto; o roubo das peças do General de Divisão Quesnel; do senhor Taboureau, Auditor do Conselho de Estado; do Coronel de Artilharia Picoteau; e doutros indivíduos militares ou civis; assim como de um Destacamento de Dragões; a revolta do Regimento dos Caçadores de Valença; e a do Regimento de Múrcia; a detenção, enfim, de muitos dos meus Oficiais em Ciudad Rodrigo e Badajoz, e a impossibilidade em que se viam os senhores Oficiais espanhóis de conter os seus Regimentos:
Todas estas razões me determinaram abraçar o severo partido de desarmar os Regimentos espanhóis que ainda estavam debaixo das minhas ordens. 
Felizmente se conseguiu fazer este desarmamento sem que se derramasse sangue: nós não somos inimigos dos Soldados espanhóis que nós temos desarmado; e o meu coração repugnava a uma medida, que só tinha feito executar, obrigado da necessidade, para nossa própria segurança. Os Oficiais espanhóis conservaram suas armas: Eu determinei que as Bandeiras fossem entregues aos seus Batalhões. Ser-lhes-ão pagos os soldos; fornecer-se-lhes-ão víveres, como até agora; sua actual posição em nada mudará minhas boas disposições a seu respeito. 
Soldados, eu estou satisfeito da maneira com que vos tendes conduzido: eu tenho visto com prazer o vosso sossego e a vossa tranquilidade: se os ingleses querem agora atacar-nos, nós estamos sós para recebê-los. 
VIVA O IMPERADOR NAPOLEÃO!
Dado no Palácio do Quartel-General de Lisboa, 11 de Junho de 1808 

Assinado: O DUQUE DE ABRANTES 


Soldados!

O comportamento infame do General espanhol Belestá, no Porto; a violência com que se lançou mão do General de Divisão Quesnel; de mr. Taboureau, Auditor do Conselho de Estado; do Coronel de artilharia Picoteau; e de vários outros indivíduos militares ou civis, como também de um destacamento de dragões; a revolta do regimento de caçadores de Valença, a do regimento de Múrcia; finalmente, a prisão de vários dos meus Oficiais em Ciudad Rodrigo e em Badajoz, e a impossibilidade em que estavam os Oficiais espanhóis de ter mãos nos seus regimentos:
Todas estas razões me determinaram a tomar o violento partido de desarmar os regimentos espanhóis que ainda ficavam debaixo das minhas ordens. 
Este desarmamento se fez felizmente sem efusão de sangue. Nós não somos inimigos dos soldados espanhóis que havemos desarmado; só por necessidade e por nossa própria segurança é que eu mandei executar uma medida que repugnava ao meu coração. Os Oficiais espanhóis conservam as suas armas; e eu ordenei que as Bandeiras se entregassem aos próprios batalhões. O soldo lhes será pago, e os víveres fornecidos como dantes se praticava. A sua situação actual não fará mudança alguma na boa disposição em que estou para com eles. 
Soldados, satisfeito estou do modo com que vos haveis comportado; e tenho visto com prazer a vossa quietação e tranquilidade. Se os ingleses quiserem agora vir ter connosco, achar-nos-ão de todo prontos a arrostá-los. 
Viva o Imperador NAPOLEÃO! 
Dado no Palácio do Quartel-General, em Lisboa, a 11 de Junho de 1808 

(Assinado) O DUQUE DE ABRANTES 




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Observações:

Transcrevemos aqui duas versões desta ordem do dia (ver a este respeito o que comentou Acúrsio das Neves): 
- à esquerda, a que foi publicada por editais em todo o país [Fonte: Alberto Iria, A Invasão de Junot no Algarve (Subsídios para a História da Guerra Peninsular), Lisboa, Tip. Inácio Pereira Rosa, 1941, p. 358 (Doc. 38)].
- à direita, a versão corrigida, conforme foi publicada na Gazeta de Lisboa [Fonte: 2.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 23, 11 de Junho de 1808].

Deve-se notar que, apesar de pública, esta ordem do dia era dirigida ao "Exército de Portugal", ou seja, à Armée de Portugal, nome que entretanto tinha adoptado o originalmente chamado (primeiro) Corpo de Observação da Gironda, comandado por Junot (não confundir com o segundo corpo do mesmo nome, comandado por Dupont). O exército português propriamente dito tinha deixado de existir depois de Junot ter decretado o licenciamento e desmobilização da sua maior parte (e enviado cerca de 10.000 soldados portugueses para a França), apesar do mesmo General se ter visto obrigado a conservar algumas tropas portuguesas em zonas onde o número de militares franceses era reduzido ou inexistente. Era por exemplo o caso do Algarve, que apesar de contar com cerca de 900 franceses aquando da publicação da ordem do dia transcrita, mantinha activo (embora muito provavelmente não na totalidade) o Regimento de Artilharia n.º 2 (que guarnecia as fortificações costeiras da província).


Proclamação de Junot justificando o desarmamento dos soldados espanhóis e prometendo a defesa do país (11 de Junho de 1808)


O General em Chefe do Exército aos Portugueses! 

Portugueses! Depois de seis meses de tranquilidade, íeis a ficar expostos a ver perturbada a paz neste Reino pela efervescência cada vez maior das tropas espanholas, que não entraram no vosso país, ao que parecia, senão como aliadas, mas cujo objecto era a desmembração de Portugal. Quando no primeiro de Fevereiro declarei, em nome do Imperador, que eu tomava posse do Governo de Portugal, por inteiro, começaram os espanhóis a mostrar para comigo alguma falta de inteligência. Os sucessos acontecidos em Espanha, a insurreição desenfreada de alguns distritos daquele Reino, induziram diferentes corpos de tropas espanholas à deserção; e desde então começou a haver razões provocativas e alguns meios de facto para com os meus soldados. 
Contando decerto com o bom espírito dos habitantes do Porto, não tinha eu deixado naquela província mais que alguns espanhóis; e tinha enviado para governá-la um General de Divisão e alguns Oficiais que se destinavam a ser empregados nas Praças. Aquele valoroso General, o Corregedor mor, um Coronel de artilharia e vários outros Oficiais civis e militares, que julgavam poder viver sossegados à fé de um General espanhol, e no meio das suas tropas - que digo, portugueses! - esse General espanhol caiu na vileza de prender aqueles quatro ou cinco Oficiais que nele confiavam: Belestá é o seu nome! Caiu ele na vileza de consentir que Oficiais valorosos fossem maltratados pelos seus soldados rebeldes, sem se atrever a reprimi-los. Saiu ele de Portugal com as tropas que lhe foram confiadas para defender este país; nele não há de tornar a entrar. 
O mesmo espírito que dirigiu o movimento do Porto se comunicou às tropas espanholas acantonadas em Lisboa, Setúbal e seus arredores. A tranquilidade estava para ser perturbada; e eu mesmo teria de pôr-me em defesa contra tropas que faziam parte do meu exército. Obrigado me vi a tomar o partido de desarmá-las: assim o fiz. Nada temam porém os espanhóis estabelecidos em Lisboa e em todo o Reino de Portugal, seja qual for o ofício ou emprego que exercerem. Não procederei a represálias, assim como o fizeram os feros habitantes de Badajoz, de Ciudad Rodrigo, etc., etc., havendo tido a barbárie de lançar em masmorras alguns desgraçados franceses, pais de família, estabelecidos entre eles havia 50 anos, e que os faziam gozar dos efeitos da sua indústria! Farei vigiar severamente sobre todos os indivíduos dessa nação; e aquele que tentar semear a turbulência entre vós, será logo punido, e exemplarmente. 
Portugueses! Satisfeito estou até aqui do vosso bom espírito. Haveis sabido prezar o bem que se vos deve seguir da protecção de NAPOLEÃO o GRANDE: tendes em mim confiança. Continuai assim; eu vos dou minha palavra de livrar o vosso país de toda a invasão, de toda a desmembração. Se os ingleses, que só sabem fomentar a discórdia, quiserem agora vir procurar-nos, achar-nos-ão inteiramente prontos a defender-vos. Alguns dos vossos batalhões de milícias e os regimentos que ficam em Portugal farão parte do meu Exército, para defender as vossas fronteiras; instruir-se-ão na arte da guerra; e se eu for tão feliz que possa pôr em prática as lições que recebi de NAPOLEÃO, ensinar-vos-ei a vencer. Viva o Imperador! 
Dado no palácio do Quartel-General em Lisboa, a 11 de Junho de 1808. 

Assinado: O Duque de Abrantes 

[Fontes: Copiámos o texto inserido no 2.º Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 23, 11 de Junho de 1808; o edital digitalizado (contendo tanto a versão original, em francês, como uma outra tradução com variantes), encontra-se presente no Archivo Histórico Nacional de España, Correspondencia de Juan Betegón al general Domingo Belesta (Código de referência: ES.28079.AHN/1.1.32//ESTADO, 1750, Exp. 12)].


A forma como Junot reagiu aos acontecimentos do Porto, segundo Acúrsio das Neves


Tristes prazeres, amargurado festim! Poucas horas eram passadas, depois de uma noite tão agradável, quando Junot recebeu a notícia dos sucessos do Porto, e então é que começaram os apertos; mas as angústias de que o seu coração se via oprimido não lhe embaraçaram o dar as providências que julgou proporcionadas às circunstâncias.
Viram-se imediatamente sair tropas francesas para Mafra, Santarém e outros lugares; algumas passaram o Tejo, e ignorava-se o seu destino. Ferviam os correios, as imprensas puseram-se em actividade, notava-se susto e agitação em todos os movimentos dos franceses, e só algumas notícias que pouco a pouco vinham chegando ao público, e os sucessos que foram saindo daquela efervescência dos espíritos puderam enfim aclarar os motivos.
Tanto o General [Junot] como Lagarde e Hermann responderam às cartas de participação que receberam do Porto*. Junot louvou a Câmara, mas dando sempre conhecer a espinha que lhe ficava na garganta, porque ela não tinha tomado logo partido contra os espanhóis. Lagarde não só escreveu uma carta furiosa ao Corregedor, mas também circulares aos magistrados de todas as terras confinantes com a Espanha, que continham as suas missões e ameaças do costume; e concordaram todos em intimidar o Porto com 4.000 homens da divisão de Loison.
Este General, que tinha ordem de entrar em Ciudad Rodrigo e aí se manter, e que não pudera penetrar senão até o forte de la Concepción, situado na extremidade da Espanha em frente de Almeida, que os espanhóis haviam evacuado à sua chegada, a teve com efeito agora para retroceder e cair sobre o Porto. Assim que a recebeu, ele se pôs em marcha, demolindo uma parte do forte, transportando para Almeida as munições e mais efeitos que pôde, e saqueando algumas aldeias por onde passou.
A noite de 9 para 10 foi de grande agitação para os Generais e outros empregados franceses em Lisboa; mas dos seus resultados não apareceram ao público senão as declamações de uma gazeta no estilo do costume. A de 10 para 11 foi ainda de maior reboliço, e de maior vulto o seu parto. Lagarde, para dar mais expedição ao seu laboratório, tinha feito conduzir uma imprensa para a casa da sua residência, e nessa noite mandou também ir o administrador da gazeta [António Rodrigues Galhardo] pela uma hora da madrugada. Trabalhou-se sempre, e contudo Lagarde não se recolheu senão muito depois de amanhecer, quando já estava executado aleivosamente o desarmamento das tropas espanholas que se achavam acantonadas nos abarracamentos de campo de Ourique e Vale de Pereiro.
Na tarde precedente tinham elas recebido ordem de se reunirem à hora dada, para embarcarem no Terreiro do Paço e partirem para Espanha. Era este o alvo dos seus desejos, e caminhando alegres debaixo deste engano, que favorecia o escuro da noite, apenas chegam ao Terreiro do Paço, os valentes espanhóis se acham rodeados de peças de artilharia e de uma quadrilha armada de cobardes franceses, que só por cobardes podiam cometer uma semelhante perfídia. Achavam-se escondidos com a sua artilharia debaixo das arcadas dos edifícios que fecham o recinto daquela praça e nas embocaduras das ruas circunvizinhas; dali caíram repentinamente sobre os espanhóis, que bramiam como leões, mas tiveram de ceder, como cordeiros, na presença da metralha e das baionetas; foram ignominiosamente desarmados, e o campo ficou coberto com as suas mochilas e barretinas, que tudo foram obrigados a largar, e tudo foi entregue a um rigoroso saque.
Apareceu então ao público o trabalho da noite precedente, e revelou-se o mistério das tropas francesas que tinham partido para os diferentes postos, com destino secreto. Uma gazeta, um edital e uma ordem do dia, tudo no gosto francês, anunciaram o desarmamento dos espanhóis em todos os lugares que ocupavam; procurando encobrir com cores plausíveis um procedimento infame, de que nenhum verniz pôde ofuscar a negrura**.
Pela tarde começaram a aparecer começaram a aparecer em Lisboa os prisioneiros espanhóis feitos nos seus contornos; e nos dias seguintes continuaram a vir os de Mafra, Santarém e outros pontos mais remotos. Entravam em magotes, sem armas, e entre franceses, como vítimas entre algozes. Eu vi muitos destes infelizes, e nunca se apagará no meu espírito a forte impressão que me causaram o aspecto e a marcha triste e desconcertada com que os conduziam os seus tiranos, em recompensa de terem abandonado os seus lares para os acompanharem a um país estrangeiro, e serem instrumentos involuntários dos seus roubos e atrocidades. Maridos inválidos eram acompanhados por mulheres e meninos banhados em lágrimas, que mal podiam suportar as fadigas da jornada; outros iam conduzindo tristemente pelas arreatas os jumentos que levavam os filhos e as consortes; vi mulheres desmaiadas, vi outras atenuadas de cansaço e cobertas de suor, por efeito de uma calma ardente, trazendo seus filhinhos aos peitos; e vi também alguns, presos por cordas para não caírem, em cima de carros atacados de caixas, panelas, caldeirões e outros objectos próprios de tropas volantes. A fraqueza do sexo, a enfermidade e a infância sofriam, como a robustez, os mesmos trabalhos. Foram todos conduzidos a vários navios surtos no Tejo e aí conservados, debaixo de guardas vigilantes, maltratados e mesmo morrendo de fome, até que os eternos inimigos do continente, segundo a expressão dos franceses, lhes vieram restituir as armas e a liberdade, depois de terem derrotado no Vimeiro os invencíveis da grande nação. 
Os oficiais tinham ficado ao princípio em liberdade, debaixo da fé de um termo que assinaram, de se não ausentarem; mas passados poucos dias também foram presos, ou porque alguns dessem o exemplo de se retirarem, o que não é de admirar, pois se consideravam num injusto cativeiro; ou porque se tomasse este pretexto para serem reduzidos ao mesmo abatimento que os soldados. De uns e outros conseguiram muitos o escaparem das suas prisões, porque achavam no povo português todo o auxílio possível para esta fuga.
Carrafa não se livra de veementes suspeitas de ter concorrido para uma tão atraiçoada entrega das tropas do seu comando; pelo menos a opinião pública dos portugueses o condenou sempre; e mais o condenaria, se naquele tempo se soubesse um facto que hoje posso dar por autêntico. Carrafa ofereceu a Junot um plano para a redução do exército espanhol, à semelhança do que se havia praticado com as tropas portuguesas, do qual o mesmo Junot fez presente a seu amo [Napoleão]. Contudo, pode ser verdadeiro este facto e Carrafa não ter sido cúmplice no desarmamento e prisão das suas tropas; suspeitas não são verdades demonstradas.

[Fonte: José Accursio das Neves, Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino - Tomo III, Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1811, pp. 102-110].

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Notas:


* [Nota nossa] Foram pelo menos cinco as cartas que do Porto foram enviadas ao Governo francês em Lisboa:
1. Carta de Belestá a Junot;
2. Carta da Câmara do Porto a Junot;
3. Carta de Luís de Oliveira da Costa, Governador interino das Armas do Porto, a Junot;
4. Carta de José Teixeira de Sousa, Corregedor da comarca do Porto, a Lagarde;
5. Carta do Tribunal da Relação do Porto a Hermann.


** [Nota original de Acúrsio das NevesA ordem do dia começava por esta forma no original francês: La conduite infâme du Général espagnol Belestá a O-Porto, l’enlèvement du Général de division Quesnel, de Mr. Taboureau, etc., e eis aqui como se traduziu na primeira edição: A conduta infame do General espanhol Belestá no Porto, o roubo das peças do General de Divisão Quesnel, do Senhor Taboreau, etc. L’enlèvement du Général de division Quesnel, de Mr. Taboureau, etc., significa o roubo das peças do General, segundo o dicionário do tradutor; e acham-se muitas passagens destas nas traduções das demais obras do governo francês. Tais eram os homens ilustrados, que estavam ao seu soldo! Na segunda edição, que se pôs em venda pública, conheceu-se e procurou-se adoçar o erro, pondo-se pessoas, em lugar de peças; na gazeta finalmente se emendou nesta forma: a violência com que se lançou mão do General, etc.