quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Carta do Bispo do Porto ao General Bernardim Freire de Andrade (24 de Agosto de 1808)



Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor: 

Todas as providências de que Vossa Excelência se lembra estão dadas em tempo conveniente, e Sebastião Correia partiu para o Exército [português] a semana passada, e já de Coimbra me escreveu participando-me as notícias que ali encontrou do Exército inglês; desejo que Vossa Excelência tenha muito boa saúde, e ter ocasiões em que lhe possa dar gosto.
Deus guarde a Vossa Excelência muitos anos.
Porto, 24 de Agosto de 1808.
De Vossa Excelência amigo muito venerador.

Bispo, Presidente e Governador.

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 200 (doc. 33)].

Carta do Major Aires Pinto de Sousa ao General Bernardim Freire de Andrade (24 de Agosto de 1808).




Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:

Logo que cheguei a este Quartel-General, tive uma larga conferência com o General em Chefe, de quem fui recebido do modo que na minha antecedente expliquei a Vossa Excelência. A primeira coisa que consegui do General inglês foi que ele requeresse de ofício a Vossa Excelência a suspensão das hostilidades, ao que ele se prestou do melhor modo, até pondo antedata na carta; passei a expor-lhe as circunstâncias da nossa posição na Lourinhã, o risco que corriam as nossas subsistências, que éramos obrigados a tirar desde Leiria pelas Caldas, Óbidos, etc. Respondeu que não havia razão para o mínimo receio, porque o Exército que Vossa Excelência comandava tinha sido considerado como unido ao Exército Auxiliar britânico; que o artigo dizia unicamente respeito ao Exército da Beira, que os franceses reputavam como um ajuntamento de paisanos. Expliquei-lhe o negócio e acrescentei que era muito natural que esse Exército, que não era de paisanos mas de tropa regular, estivesse actualmente de posse de Santarém; porém, que entretanto Vossa Excelência, ainda antes de requerido oficialmente pela conservação da boa inteligência, mandara suspender as operações daquele Exército, que contudo não parecia decente que retrogadasse [sic]; respondeu-me que a inteligência do Armistício era sem dúvida que os Exércitos ocupassem as posições em que se achassem ao tempo da sua conclusão. Quanto ao ponto de fazer figurar o Governo do Porto, além de várias instâncias que me fez, respondeu-me com muita franqueza o seguinte: A minha comissão é puramente militar; não estipulei nem podia estipular coisa alguma sobre assuntos políticos com o General Junot, porque para isso não tinha instruções algumas do meu Governo. Fiz-lhe várias outras instâncias para mostrar-lhe quanto era bem fundada a autoridade do nosso Governo segundo as nossas Leis; respondeu-me que ele não entrava em discussão sobre semelhante assunto, e concluiu dizendo-me que não era o seu fim tratar assuntos políticos com Mr. Junot, porém tão somente militares; e instando eu ainda terceira vez sobre o negócio, finalizou o assunto com uma pergunta, a que julguei não poder responder, e foi: Como quereis vós que Junot trate com o Governo do Porto, quando ele seguramente não o reconhece, nem realmente o pode reconhecer sem expressa ordem do seu Governo; porventura quereis vós que por semelhante motivo se entre em discussões morosas? Respondi com efeito que me parecia que Sua Excelência tinha razão, e acrescentei o muito que toda a nação confiava da Lealdade inglesa, etc.
Respondeu que estava certo que merecia a confiança da nação portuguesa, e que podia [as]segurar-me que as suas intenções, segundo as ordens da sua Corte, não tendiam a outra coisa senão ao restabelecimento da Regência estabelecida por Sua Alteza Real, o que teria lugar imediatamente à saída dos franceses. Fiz-lhe notar as considerações que era necessário fazer sobre este assunto, bem como pelo que respeitava à amnistia; respondeu-me que decerto aqueles membros ainda mesmo da Regência contra quem a opinião pública se decidisse, seguramente não deveriam mais ser contemplados como tais, e que nesse caso a substituição deles se devia regular pelo que Sua Alteza Real mesmo tinha determinado; concluindo mesmo que era muito mais útil à causa pública que estas e outras pessoas de facção francesa se deixassem sair para onde não fossem mais prejudiciais ao público, não insistindo mais sobre este assunto por não arriscar a demora prejudicial.
Não esqueceu o ponto da concessão da bagagem, e a esse respeito asseverou-me o General que nunca se entendera na conferência que houvera [entre o próprio Dalrymple e Kellermann na tarde de 22 de Agosto], senão a propriedade particular, e que podia [as]segurar-me que quanto às pratas das igrejas e jóias, nunca se entendera a concessão a semelhante ponto, nem mesmo a respeito dos fundos públicos; ainda que a respeito deste último ponto via ele suma dificuldade para verificar a sua existência, e que este ponto poderiam eles iludir talvez sem remédio. Enfim, de tudo deu-me muitas desculpas de não se ter feito aviso a Vossa Excelência destes preliminares do Armistício, em razão da grande pressa que se dera o General Kellermann; porém, que para mostrar a Vossa Excelência que desejava tudo quanto pudesse ser a bem dos interesses de Portugal, que seria muito do seu gosto que Vossa Excelência quisesse pôr por escrito todas as reflexões e modificações que lhe parecessem necessárias para o bem de Portugal; porque da sua parte, dele General, ficava o propô-las na primeira conferência, e trabalhar quanto pudesse para que se fizesse tudo o mais que pudesse ser a nosso favor. Eis [que] aqui tem Vossa Excelência quanto pude fazer. Estimarei que Vossa Excelência com isto fique mais sossegado, e espero que Vossa Excelência mande as observações que o General lembra e tudo o mais que Vossa Excelência julgar a propósito para eu mesmo lhe apresentar; em consequência do Vossa Excelência verá que não fiz uso do protesto, nem tampouco das observações que vinham preparadas; porque sendo a maior parte relativas a pontos em que não há dúvida, parece escusado propô-las. Quanto ao ponto de intervir na capitulação o Governo do Porto, parece-me prudente não insistir à vista das razões do General, que eu apenas substanciei; ainda quando não houvessem os motivos que Vossa Excelência me anunciou no bilhete desta tarde*
Tenha Vossa Excelência a saúde que eu lhe desejo, e acredite que tudo quanto pelo crédito de Vossa Excelência e do nosso Exército foi preciso trabalhar, o fará com gosto este que tem a honra de ser de Vossa Excelência súbdito o mais atento e obrigado.

Aires Pinto de Sousa

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 209-210 (doc. 38)].


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Nota: 

* Ignoramos que bilhete fosse este.

Carta do Major Aires Pinto de Sousa ao General Bernardim Freire de Andrade (24 de Agosto de 1808).




Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:

Na conformidade das instruções de Vossa Excelência falei ao General em Chefe sobre todos os pontos essenciais do Armistício proposto pelo General Kellermann, e parece-me que o negócio não é tão feio como se nos pintou. Em primeiro lugar, o General ouviu-me com muita atenção, e pareceu dar peso às minhas razões. Assentou logo de escrever a Vossa Excelência na data de ontem, referindo-se à cópia dos artigos, como se fosse carta de remessa deles; diz-me mais, que Vossa Excelência a eles fazia muito bem de fazer aquelas observações que parecessem congruentes e que ele General tentaria tudo para as conciliar com as exorbitantes pretensões dos franceses, apoiadas na ameaça de fazer arrasar até aos fundamentos a cidade de Lisboa; quanto às intenções sobre o restabelecimento do Governo, diz que imediatamente [que] saíssem os franceses, considerava restabelecida a Regência estabelecida pelo Príncipe Regente; quanto a fazer intervir o Governo do Porto, respondeu-me que a matéria não era política, mas puramente militar; enfim, muitas outras coisas que eu verbalmente porei na presença de Vossa Excelência e que não cabem no curto limite de uma carta, mas que me dão toda a esperança de que Vossa Excelência e o Exército será considerado, e as suas observações atendidas. Finalmente, espero que Deus nos ajudará, pois que a ninguém desampara.
Deus guarde a Vossa Excelência. 
Ramalhal, 24 de Agosto de 1808.

De Vossa Excelência primo e súbdito o mais atento,
Aires Pinto de Sousa

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 208 (doc. 37)].

Observações de Bernardim Freire de Andrade sobre o Armistício assinado no dia 22 de Agosto (24 de Agosto de 1808)




Observações substanciadas sobre alguns artigos e fórmulas do Armistício do Exército francês e britânico em Portugal, comunicadas por cópia ao General Comandante do Exército português



1.º Parece não poder deixar de fazer estranheza que na Convenção feita entre o General Sir Arthur Wellesley e o General Kellermann não se anuncie de algum modo o fim político que se tem em vista na presente guerra, que pela constante lealdade da nação britânica e à vista das proclamações publicadas pelo Comandante das suas forças navais e terrestres, e finalmente pelo unânime consentimento tão honrada e tão energicamente expressado de todo o povo português, não é nem pode ser outro senão o restabelecimento da Monarquia portuguesa e da Real Casa de Bragança.


2.º Parece que também se poderá reputar estranho que na dita Convenção não se contemple em nada a Junta Suprema do Governo Provisório de Portugal, estabelecida na cidade do Porto e reconhecida por todo o país que se acha livre do inimigo francês, assim como o Exército português, que pelas expressões do Artigo 4.º não parece dignamente enunciado.

3.º Ainda que a dita Convenção pareça não ter por objecto mais do que uma transacção entre os dois Exércitos, contudo nas circunstâncias actuais, tendo o inimigo comum fomentado partidos em diferentes classes e procurado por todos os meios, entre nós como na Espanha e em toda a Europa, indispor a massa geral contra as rectas intenções do Governo britânico na parte activa que há tomado na guerra do continente, seria muito possível aquela falta de consideração pelo Príncipe, Governo e Exército português produzir efeitos contrários aos fins que sem dúvida se propõe a Grã-Bretanha, propagando as desconfianças que os partidistas franceses desejam há muito tempo excitar. 


4.º Nas estipulações já ajustadas na mesma Convenção se encontram artigos que podem ser prejudicialíssimos aos interesses deste país e da causa comum, como são:


     I. Tendo-se estipulado simplesmente no artigo 3.º que a linha de demarcação entre os dois Exércitos inglês e francês fosse o rio Sizandro, mas não se determinando que os Exércitos ocupassem as mesmas posições que actualmente têm; e declarando-se no artigo seguinte que a linha de demarcação para a tropa portuguesa fosse a linha de Leiria a Tomar, fica à disposição do inimigo e sujeito às suas vinganças todo o país [=região] intermediário que as nossas tropas têm já ocupado, sem que por isso possa o mesmo inimigo ser arguido de faltar às estipulações. 


     II. Que pelo mesmo motivo pode ficar absolutamente perdido este Exército, que se acha nesta posição pela vontade com que se prestou a cooperar juntamente com o Exército inglês, uma vez que o inimigo queira interceptar a sua comunicação com o país.


     III. Que tendo-se convencionado pelo Artigo 6.º uma amnistia geral para os franceses e seus aderentes, ainda mesmo portugueses, o que parece exceder as faculdades de um General do Exército Auxiliar, não se estipule com muita mais razão a segurança das vidas e fazendas dos povos leais que por aquela demarcação ficam expostos a todo o ressentimento dos Generais e Exército francês.
     
     IV. Que a concessão feita pelo Artigo 5.º de poderem os indivíduos do Exército francês conduzir consigo as suas bagagens e efeitos particulares de qualquer natureza que sejam, vai a reduzir este país à maior miséria, porque não só levarão a este título o fruto dos imensos roubos e concussões que têm feito os Generais e mais indivíduos deste Exército; mas as muitas propriedades e fundos públicos acumulados em Lisboa e que eles têm já subtraído ou podem subtrair dos depósitos respectivos onde se deveriam achar; e que deste modo paralisariam a nação para a defesa a que se deve preparar, ou seja no interior do país, ou ajudando aos seus vizinhos os espanhóis; parecendo por isso muito conveniente que na redacção da Convenção definitiva se modifique este artigo de tal modo que não venham a resultar dele os funestos efeitos que se receiam.


5.º Que prestando-se à Suspensão de armas por ora, mas exigindo que lhe seja requerida formalmente por escrito da parte do General em Chefe do Exército britânico, o General do Exército português se julga necessitado a pretender do mesmo General em Chefe a segurança de que o Comandante do Exército francês não ocupará povoação alguma ou atacará algum povo compreendido entre o rio Sizandro e a linha que das suas vertentes atravessa a Serra de Montejunto, passando por diante do Cercal, Alcoentre, Rio Maior e Santarém, no caso que se ache ocupado já pelo Exército combinado da Beira e Espanha, como é natural que acontença em consequência das ordens que tinham aqueles Comandantes e das posições que já ocupavam.


Quartel-General da Lourinhã, 24 de Agosto de 1808.

Bernardim Freire de Andrada [sic].



[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, pp. 205-206 (incluído no doc. 35)].


Protesto formal do General Bernardim Freire sobre o Armistício de 22 de Agosto (24 de Agosto de 1808)



O General em Chefe do Exército português, Bernardim Freire de Andrada [sic], sendo-lhe comunicada por cópia a Suspensão de armas entre o Exército francês e inglês em Portugal, convencionada no dia 22 do corrente pelos Generais Sir Arthur Wellesley e Mr. Kellermann, autorizados para esse efeito pelos respectivos Generais em Chefe de ambos os Exércitos, e tendo oferecido, vocalmente, pelo Major Aires Pinto de Sousa ao General em Chefe do Exército inglês, pedido pelo Governo Provisional deste Reino a Sua Majestade Britânica em auxílio contra o inimigo comum, as observações que lhe pareceram oportunas e que remete substanciadas por cópia, sem que todavia o sobredito General [Bernardim Freire] se mostrasse convencido da justiça e importância delas, se julga obrigado interinamente a protestar do modo mais formal e solene, como de facto protesta pela presente Cédula, contra todos e cada um dos artigos e cláusulas da dita Convenção que de qualquer modo e em qualquer tempo encontrarem [ofendida] a Soberania do Príncipe Regente e Real Casa de Bragança, a Independência da Nação Portuguesa, a Autoridade do actual Governo Provisional deste Reino, a Honra e Segurança do Exército Português, e a pública manutenção das vidas, fazendas e liberdade civil de todos os Habitantes de Portugal.
Quartel-General da Lourinhã, 24 de Agosto de 1808.

Bernardim Freire de Andrada [sic].

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 202 (incluída no doc. 35)].



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Nota: 

O Major Aires Pinto de Sousa não chegou a entregar este protesto formal (juntamente com as observações com que ia acompanhado) ao General Dalrymple, pelos motivos que no próprio dia 24 de Agosto viria a expor ao General Bernardim Freire de Andrade.

Instruções secretas enviadas pelo General Bernardim Freire de Andrade ao Major Aires Pinto de Sousa (24 de Agosto de 1808)



Instruções secretas para o Major Aires Pinto, organizadas no Conselho [Militar].


Assentou-se que o Major Aires Pinto passasse ao Quartel-General do Exército britânico a expor ao Comandante em Chefe do mesmo Exército o seguinte:

1.º Que ao General em Chefe e mais oficiais Chefes das diferentes Armas [infantaria, cavalaria e artilharia] do Exército português, que se convocaram em Conselho, causou a maior estranheza ver que na Convenção que se lhes comunicou, feita entre o General Sir Arthur Wellesley e o General Kellermann, não se trata do fim que se tem em vista na presente guerra, que não é nem pode ser outro, à vista das proclamações publicadas pelos Comandantes das forças navais e terrestres da Grã-Bretanha*, e pelo unânime consentimento, tão energicamente expressado, de todo o povo português, senão o restabelecimento do Governo do Príncipe Regente e da Real Casa de Bragança. 


2.º Que lhe causa uma igual estranheza e sentimento ver que nesta Convenção não se contemple em nada a Junta Suprema do Governo Provisório de Portugal, estabelecida na cidade do Porto e reconhecida por todo o país que se acha livre do inimigo francês, assim como o Exército português, que pelas expressões do Artigo 4.º se pode entender como um simples ajuntamento de rebeldes armados.

3.º Que um semelhante procedimento pode trazer após si as mais funestas consequências e excitar uma guerra civil mais desastrada do que as circunstâncias em que nos achávamos e prejudicialíssima aos fins que se propõe Inglaterra de libertar as Espanhas do jugo francês; pois que fazendo desconfiar tanto a nação portuguesa como a Espanha da sinceridade dos motivos pelos quais Inglaterra faz tão grandes esforços, longe de se prestar a aceitá-los, poderão querer tratar de os repelir com a mesma energia com que se declararam contra os franceses.

4.º Que nas estipulações já ajustadas na mesma Convenção se encontram artigos que podem ser prejudicialíssimos para os interesses deste país e da causa comum, como são:

     I. Tendo-se estipulado simplesmente no artigo 3.º que a linha de demarcação entre os dois Exércitos inglês e francês fosse o rio Sizandro, mas não se determinando que os Exércitos ocupassem as mesmas posições que actualmente têm; e declarando-se no artigo seguinte que a linha de demarcação para a tropa portuguesa fosse a linha de Leiria a Tomar, fica à disposição do inimigo e sujeito às suas vinganças todo o país [=região] intermediário que as nossas tropas têm já ocupado, sem que por isso possa o mesmo inimigo ser arguido de faltar às estipulações. 


     II. Que pelo mesmo motivo pode ficar absolutamente perdido este Exército, que se acha nesta posição pela vontade com que se prestou a cooperar juntamente com o Exército inglês, uma vez que o inimigo queira interceptar a sua comunicação com o país.


     III. Que tendo-se convencionado pelo Artigo 6.º uma amnistia geral para os franceses e seus aderentes, ainda mesmo portugueses, o que parece exceder as faculdades de um General do Exército Auxiliar, não se estipule com muita mais razão a segurança das vidas e fazendas dos povos leais que por aquela demarcação ficam expostos a todo o ressentimento dos Generais e Exército francês.

     IV. Que a concessão feita pelo Artigo 5.º de poderem os indivíduos do Exército francês conduzir consigo as suas bagagens e efeitos particulares de qualquer natureza que sejam, vai reduzir este país à maior miséria, porque não só levarão a este título o fruto dos imensos roubos e concussões que têm feito os Generais e mais indivíduos deste Exército; mas as propriedades e fundos públicos acumulados em Lisboa e que eles têm já subtraído ou podem subtrair dos depósitos respectivos onde se deveriam achar; e que deste modo paralisarão a nação para a defesa a que se deve preparar, ou seja no interior do país, ou ajudando os seus vizinhos os espanhóis; parecendo por isso muito conveniente que na redacção da Convenção definitiva se modifique este artigo de tal modo que não venham a resultar dele os funestos efeitos que se receiam.

5.º Que prestando-se à Suspensão de armas por ora, mas exigindo que lhe seja requerida formalmente por escrito da parte do General em Chefe do Exército britânico, o General do Exército português se julga necessitado a pretender do mesmo General em Chefe a segurança de que o Comandante do Exército francês não ocupará povoação alguma mesmo das que ficam fora da linha de demarcação, nem abandonará as posições actuais.


6.º Que tendo o Exército inglês recebido numerosos reforços, e ficando por isso inúteis os corpos portugueses que se lhes prestaram na ocasião em que se supunha a sua cooperação necessária, se deve requerer que os torne a mandar juntar a este Exército.


7.º Depois do Major Aires Pinto haver exposto ao General em Chefe do Exército britânico estas observações e de lhe fazer sentir a justiça e conveniência delas, quando veja que o dito General não se preste a assentir nelas, lhe entregará a Protestação formal** que se lhe confia, e de um modo que para agora e para o futuro possa consta à nação e ao mesmo Governo inglês e a toda a Europa que os Oficiais Comandantes deste Exército fizeram quanto estava da sua parte para evitar as funestas consequências que se receiam, enquanto o Governo legítimo, que reconhecem, não pode tomar, pela distância em que se acha, a determinação conveniente que imediatamente se vai solicitar.

Quartel-General da Lourinhã, 24 de Agosto de 1808.

Bernardim Freire de Andrada [sic].

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, pp. 203-204 (incluído no doc. 35)].


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Nota: 

*  Ver em particular a proclamação de Charles Cotton e Wellesley datada de 4 de Agosto.



**  Como mais adiante se verá, Aires Pinto de Sousa não chegaria a entregar ao General Dalrymple o aludido protesto, bem como as observações que nele se incluíam.

Carta do General Bernardim Freire de Andrade a Dalrymple (24 de Agosto de 1808)


Exigindo o meu dever, nas circunstâncias em que me acho, que eu ofereça à consideração de Vossa Excelência algumas observações sobre o Armistício ultimamente convencionado entre o Exército francês e o que Vossa Excelência comanda, envio para este efeito à presença de Vossa Excelência o Major Aires Pinto, que por suas qualidades pessoais e pela confiança que nele tenho, se faz digno desta comissão. As reflexões que ele é encarregado de expor a Vossa Excelência me parecem da última importância, e espero que Vossa Excelência, julgando-as [como] tais, se digne obrar em consequência delas, como pede a honra e o interesse de ambas as nações.
Deus guarde a Vossa Excelência.
Quartel-General da Lourinhã, 24 de Agosto de 1808.

Bernardim Freire de Andrada [sic].

[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 202 (doc. 35). Originalmente, esta carta foi publicada em inglês, in 
Copy of the Proceedings upon the Inquiry relative to the Armistice and Convention, &c. made and conclued in Portugal, in August 1808, between The Commanders of the British and French Armies, London, House of Commons Papers, 31st Jannuary 1809, p. 201 (doc. 97)].

Carta do General Bernardim Freire de Andrade ao General Dalrymple (24 de Agosto de 1808)




Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor:

Em conformidade da disposição do Armistício estipulado entre o Exército inglês e o francêsque Vossa Excelência me comunica em data de ontem, tenho em data de hoje passado ordem para se suspenderem todos os movimentos de tropas do Exército da Beira, que obrava na margem direita do Tejo, e que na praça de Almeida se conservem as que se acham encarregadas do bloqueio daquela praça, para conservar interceptada a sua comunicação, sem poderem tentar algum outro projecto; e parecendo-me ter deste modo satisfeito ao que Vossa Excelência me insinua, tenho por esta ocasião a honra de dizer-me de Vossa Excelência muito atento e obrigado servidor.

Bernardim Freire de Andrade.

Quartel-General da Lourinhã, 24 de Agosto de 1808.


[Fonte: Luís Henrique Pacheco Simões (org.), "Serie chronologica da correspondencia diplomatica militar mais importante do General Bernardim Freire de Andrade, Commandante em Chefe do Exercito Portuguez destinado ao resgate de Lisboa com a Junta Provisional do Governo Supremo estabelecido na cidade do Porto e o Quartel General do Exercito Auxiliar de S. Magestade Britanica em Portugal", in Boletim do Arquivo Histórico Militar - Vol. I, Lisboa, 1930, pp. 153-227, p. 208 (doc. 36); existe uma tradução truncada desta carta em inglês, publicada originalmente in Copy of the Proceedings upon the Inquiry relative to the Armistice and Convention, &c. made and conclued in Portugal, in August 1808, between The Commanders of the British and French Armies, London, House of Commons Papers, 31st Jannuary 1809, p. 201 (doc. 96)].

Carta do General Hew Dalrymple, Comandante do Exército britânico em Portugal, ao Brigadeiro-General Frederick von Decken (24 de Agosto de 1808)



Quartel-General do Ramalhal, 24 de Agosto de 1808


Senhor:

Tive a honra de receber a vossa carta do passado dia 18, e surpreendeu-me perceber que o Bispo do Porto tomou o Governo de Portugal nas suas mãos, por ser esta uma medida de considerável delicadeza e importância, que de modo algum consigo compreender como se pode ter realizado.
Não consigo determinar por agora que passos devem ser dados em consequência deste acontecimento, sobretudo sem o ter comunicado a Sir Charles Cotton, que, contudo, conforme penso (e não só eu) não aprovará completamente o forte passo que haveis tomado, ao recomendar ao Bispo para reter uma autoridade que não posso julgar como conferida pela voz unânime da nação portuguesa. E tenho que requerer que, de futuro, não utilizareis uma linguagem que possa ser interpretada como sendo a expressão dos sentimentos do Governo de Sua Majestade, ou a dos Oficiais Comandantes em Chefe do exército e da marinha britânica, sem terdes recebido autoridade e instruções distintas para o fazer, de forma a que depois não se venha invocar que a Grã-Bretanha acabou por decidir medidas diferentes e até opostas.

H. W. Dalrymple


Extracto de uma carta de um Oficial do Exército (24 de Agosto de 1808)


[Lourinhã, 24 de Agosto]


No dia 15 do corrente [mês] o Ajudante de Campo da segunda Divisão do Exército português, João da Silveira Pinto de Lacerda, foi encarregado de ir reconhecer as forças do inimigo postado em Rio Maior e Alcobaça. Marchou para o primeiro ponto com 25 soldados de Cavalaria, e sabendo que o Exército francês evacuava aquele posto, e lembrando-se de lhe tomar bagagens, reforçou-se com alguns dos Caçadores Voluntários de Coimbra, e apressando-se, chegou mesmo à retaguarda do inimigo, e lhe tomou 20 bois, 2.500 rações de pão, com 2 pipas de vinho, que conduziu a Leiria, onde se achava naquele dia o Exército português. É digno de notar que o dito Oficial, recolhendo-se com a presa, se portou com tanto sossego de espírito e sangue frio, que em distância somente de duas léguas de uma Divisão francesa de 5.000 homens, e 8 léguas do nosso Exército, fez descansar os soldados, que fizeram seus ranchos, comeram e deram descanso e penso aos cavalos.
No dia 17 o Exército inglês unido com 2.000 portugueses atacou os franceses fortificados no vantajoso posto da Roliça, entre a Lourinhã e Óbidos, e não obstante a forte posição por eles escolhida, foram deslocados à força viva das alturas daquele sítio, defendidas por artilharia, e postos em fugida, perdendo duas peças de artilharia, e perto de 2.000 homens entre mortos, feridos e prisioneiros, compreendidos nestes muitos Oficiais.
No dia 21, estando o Exército combinado entre a Lourinhã e Torres Vedras, no sítio do Vimeiro, foi atacado pelo inimigo, que supunha surpreendê-lo. Foi o ataque recebido com tanta valentia pelo Exército combinado, que o resultado foi perder o inimigo 3.500 homens, mortos, feridos e aprisionados, sendo do número dos últimos 2 Generais, e dos feridos o General Delaborde, 20 peças de artilharia, que ficaram em nosso poder, restando-lhe somente duas. A tropa portuguesa que entrou na acção portou-se com o maior extremo de valor, concorrendo muito para a vitória a Cavalaria, que por duas vezes rompeu a linha do inimigo, o qual depois de fugir vergonhosamente até Torres Vedras, pediu armistício para capitular.
Asseguram os prisioneiros franceses que o General Loison fora morto no conflito. É certo que não foi visto no campo da batalha, donde provavelmente seria retirado pelos franceses, segundo seu costume, para haver mesmo esta dúvida, e não dar aos portugueses este prazer tão justificado.



[Fonte: Minerva Lusitana, n.º 27, 27 de Agosto de 1808].

Notícia publicada na Minerva Lusitana (24 de Agosto de 1808)



[Figueira], 24 de Agosto


Avistou-se hoje deste porto um grande número de navios ingleses, que se presumiu ser parte da numerosa frota que havia aqui aportado há dias; mas esta noite chega uma pessoa fidedigna vinda do Porto, onde havia desembarcado uma fragata inglesa, vinda de Londres, a qual afirma vir uma nova expedição de 19.000 homens, que é muito de crer [que] seja a que hoje avistámos, e a quem a dita fragata comboiava, e que o Exército inglês destinado para Portugal montava a 60.000 homens.


[Fonte: Minerva Lusitana, n.º 27, 27 de Agosto de 1808].

The oven on fire - or Boneys last Batch entirly spoiled!!!, caricatura de Isaac Cruikshank (24 Agosto de 1808)




O forno em chamas - ou a última fornada de Boney completamente estragada!
Caricatura de Isaac Cruikshank, publicada a 24 Agosto de 1808.


A fim de representar as dificuldades que Napoleão começou a sentir perante o alastramento das revoltas anti-francesas na Península Ibérica, Isaac Cruikshank concebeu uma espécie de sequela duma das caricaturas mais conhecidas de James Gillray, na qual o Imperador era representado como um padeiro a fazer fornadas de monarcas*. Contudo, dois anos e meio depois da primeira ter sido executada, o cenário alterou-se. Napoleão aparece agora vergado, de braços no ar, surpreendido pelas labaredas que irromperam do forno da Espanha e Portugal (este último nome mal se deixa ver devido ao fogo). Da boca do forno, também tapada pelas chamas, surge a expressão Um povo unido jamais pode ser conquistado, enquanto nas labaredas aparecem outras inscrições, a saber (no sentido dos ponteiros do relógio): Legiões das Astúrias, Exército de Portugal, Biscaia, Exército catalão, Exército da Galiza, Exército andaluz, Exército de Castela Velha e Nova, Exército e frota britânicaExército da Extremadura, Leão, Exército de ValenciaMúrciaExército de Granada. Perante estas chamas, Napoleão largou a pá com a qual queria meter o seu irmão José Bonaparte dentro do forno. Desequilibrado e prestes a cair como já caiu o seu ceptro, José grita ao seu irmão: "Oh Nap, Nap! O que é isto! Em vez de me tornardes um Rei, apenas me enganastes"**. Significativamente, também já caída sobre o chão debaixo de José, encontra-se uma pá em cujo cabo está inscrito o nome do General francês DupontNapoleão, que usa um avental de padeiro por cima do seu uniforme militar, bem como um chapéu bicorne exageradamente grande, exclama: "Raios, serei dominado por estas malditas chamas patrióticas; pensava que não restava uma única, mas acho que há ali mais chamas do que as que podem ser extintas por todos os meios da França". 
Na direita da imagem aparece Tayllerand, representado como assistente de padeiro, de mangas arregaçadas e avental. Observando o cenário, declara ironicamente a Napoleão: "Ai Ai! Eu disse-vos que queimaríeis os dedos nessa fornada de bolo de gengibre. Mas não tenho nada a ver com isso. Sou apenas um carcereiro, por isso toda a minha glória chegou ao fim". Tayllerand está encostado a um móvel que ostenta a inscrição Prisão do Estado, sobre o qual aparecem as cabeças de Carlos IV, da sua esposa, de Fernando VII e seus irmãos***

Outras digitalizações:

British Museum (a cores)

British Museum (a preto e branco)

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Notas: 

* Aludimos à caricatura intitulada Tiddy-Doll, the great French-Gingerbread-Baker; drawing out a new Batch of Kings, publicada originalmente a 28 de Janeiro de 1806:



** " [...] Instead of a King you've only made me a Dup - ont", no original. Trata-se de um trocadilho difícil de traduzir, entre o nome do General Dupont (que fora derrotado na batalha de Bailén), e a palavra inglesa dupe, sinónimo dos termos "ingénuo", "crédulo", "incauto" (e por extensão, "otário", "tolo", "parvo"), e dos verbos "enganar, ludibriar, lograr, iludir", sendo que a expressão be the dupe of someone significa "deixar-se enganar por alguém", enquanto que make a dupe of someone, tem o sentido de "trapacear ou enganar alguém".

*** O autor da caricatura alude ao facto de Fernando VII, o seu irmão D. Carlos, o seu tio D. António e diversas outras personalidades da alta nobreza e do alto clero espanhol terem ido viver, depois das chamadas abdicações de Bayona (e durante os 5 anos seguintes), para o Château de Valençay, propriedade do próprio Tayllerand. (Carlos IV e a sua esposa, por outro lado, foram primeiro para Compiègne, depois para Marselha, e finalmente para a Itália, acabando ambos por morrer em Roma, com poucos dias de diferença, em Janeiro de 1819).